Vizinha Joaquina
Cresci no centro da antiga cidade. Rodeado por muralhas e ruas calcetadas em estilo romano. Não com a geometria perfeita da calçada portuguesa mas sim a organização caótica de rochas lisas, plantadas no chão, ocupando o seu espaço sem pretenderem pertencer ao Todo.
No pequeno beco onde cresci - o qual ainda existe e me parece muito mais pequeno do que naquela altura – aprendi tanto que, por vezes, sinto que foi uma pré vida. Uma vida de preparação para a Real. Encontrei um pássaro morto o qual enterrei e todos os dias voltava a desenterrar por forma acompanhar a sua decomposição. Joguei à bola contra a parede caiada de branco e irritava os vizinhos pois a cal caia no chão – neve de verão – e todo o beco ficava sujo e impróprio para receber visitas.
Numa das casas, daquelas onde as portas são muito pequenas para passar sem vergar o torço, vivia a vizinha Joaquina. Sempre a conheci reformada, sentada à janela, rodeada de pequenos vasos com flores toscas e coloridas. Era uma mulher baixa, tal como todas as velhotas que merecem esse nome. Cabelo branco ou roxo, conforme a altura do mês. Cheirava a cremes antigos. Aromas que apenas as avós emanam. Mas ela não era avó. As unhas pintadas de um vermelho muito forte e um cordão de ouro ao pescoço. Vivia sozinha naquela pequena casa. Assim que passávamos a minúscula porta, uma quantidade enorme de degraus íngremes e pintados de encarnado levavam-nos até à sala de estar. Tudo se encontrava concentrado e à mão de semear. Obviamente as bugigangas espalhadas pelos cantos e móveis eram obrigatórias, assim como quadros de feira, fotografias a preto e branco de falecidos e a ocasional santinha que muda de cor conforme o tempo. Existia no canto do quarto um antigo lavatório, sem água, sem indícios de ser utilizado.
Nestes ambientes de pequenas ruas e becos, as pessoas falam umas das outras mas apenas entre copas. Segredos que apenas se trocam entre família. Corte e costura que se conjuga em passado, presente e futuro. A minha avó e a minha mãe cumprimentavam a vizinha e ela perguntava pelo menino.
- Está no colégio. Logo mais vou buscá-lo – respondia a minha avó.
Em casa, quando no final do dia nos juntávamos para jantar, um ou outro comentário saltava para cima da mesa.
- Hoje vi o senhor Manel entrar na casa da vizinha Joaquina – comentava a minha avó.
- Ela ainda recebe os homens em casa? – retorquia a minha mãe.
- Deixem lá a mulher em paz – exigia o meu avô.
No dia seguinte, fui eu quem vi o vizinho Felismino em casa dela. O senhor Felismino vendia selos e morava numa casa muito fria. Era careca, baixo e vestia todos os dias umas calças de fazenda e um colete.
Comentava-se na rua que a vizinha Joaquina também recebia o cabeleireiro Santos que morava ao virar da esquina. Havia quem não acreditasse pois todo o mundo sabia que ele era paneleiro, apesar de ser casado e ter uma filha que nós, miúdos curiosos, adorávamos ver quando ela vestia mini saias, para sair com o namorado, que tinha pinta de jogador de futebol do início dos anos 90.
Os dias passavam os anos cresciam mas certas coisas nunca mudavam. Aos domingos almoçávamos açorda.
- Hoje vi o Carlos, o relojoeiro, entrar na casa da vizinha Joaquina – a minha avó comentava enquanto vertia a água quente sobre o preparado de alho coentros e sal.
- É uma vergonha. Uma mulher com aquela idade – dizia a minha mãe enquanto semeava as colheres pela mesa.
- Deixem a mulher em pa. – dizia o meu avô pondo um ponto final nos comentários indignos de casa séria.
Eventualmente deixei de viver nesse beco, a vizinha Joaquina continuou por lá, na sua rotina de igreja, cabeleireiro e receber senhores em casa. O que faziam não sei. Gosto de acreditar que lhes lia o futuro e lhes tirava mazelas da alma, tal como naquele dia em que tive um entorse no pé esquerdo e ela, cozendo um novelo de lã com uma agulha grande e prateada, invocou uma ladainha que, por milagre ou bruxaria, eliminou a dor. No dia seguinte o inchaço havia desaparecido. Presumo que a todos aqueles senhores o inchaço também desaparecia.