um Velho Pervertido

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Máculas

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As minhas flores morrem em poucos dias, instantes no Tempo. Por vezes, em silêncios inóspitos, consigo ouvir a seiva secando lentamente, como sangue de plantas, como sangue de vida sem vida, uma não-vida e silêncio... Silêncios que, de tão ensurdecedores, não me deixam adormecer, e os remorsos. Há dias em que as noites são tudo para mim e para as minhas plantas, Elas que me respiram observam-me como uma planta observa, sabes? Também penso na minha família, e como tu, também esqueço a família por mim e pelo Tempo que escoa, como a seiva (e seca), consegues ouvir?

Naquela tarde de Agosto, quando as árvores suavam e ofegantes se moviam por entre sombras sem nunca encontrar a tranquilidade de virgem, encontrei-te sozinha (talvez estivesses acompanhada, pois o meu relógio havia parado sem corda ou sem coragem de "tiquetaquetar"; congelado) tu também me encontraste. Mão na mão, como quem deseja ser guiado, fomos juntos até ao restaurante do Xavier, o mesmo que dias depois nos ofereceu um vinho mágico, uvas massajadas por Mulheres Puras e Livres de Pecado, dizia Xavier. Onde ia? Mão na mão, e eu colhi aquele malmequer que secaste num livro do Pedro Paixão, pois sabias que não seria eterna na vida, apenas a morte ou um estado de latência poderia ser a sua Condição, e o vinho...

Nessa noite, os nossos corpos fundidos pela primeira vez, o suor do nosso sexo deixou marcas de sudário no meu sofá, eu nem percebi, tu nem sabias e ambos nem adivinhávamos, que o tic e o tac do meu relógio (marcha fúnebre) marcava como batuta o início do Tudo (agora irreconhecível como vítima de um incêndio, pois os cigarros queimam a pele e o fumo é prazer); a seiva escorreu na tua pele (Sexo).

Inocentemente, tentei apagar as manchas áridas e desérticas dessa noite, insucesso e fracasso à fútil existência da Água.

Deves-me um sofá virgem de memórias? As memórias são putas do Tempo e tu sabias disso... Uns momentos, segundos, minutos ou horas, em troca de um Tudo. Esse sofá novo apenas vai ser mais uma moeda de troca, pois como eu, tu vendes-te a esse tic-tac, à seiva que nos refresca (as árvores não o sabem).

Voltaremos ao Alentejo, mas desta vez durante o Inverno, o calor dos nossos corpos e o suor diluirá as manchas de Agosto.

Um beijo.

 

Venho-me sempre cedo demais, pois o tempo que agora é nosso amigo por vezes gosta de ser traidor apenas pelo prazer que provoca, cedo. Acordei rodeado de certezas que ontem pareciam ser difusas; o álcool que nos lava a alma e que perde força com o sal das lágrimas, não é justo para quem acredita nele, nós aprendemos isso, e depressa esquecemos. Eu disse-te que gostava de escrever poesia mas a dor de a pensar e sentir é tão forte... nunca conseguiria expressá-la, e isso fez-te fria, não "orgasmas" comigo, e isso é sofrimento. Consigo agora escrever de olhos fechados e coração destruído por dentro.

Sabes que hoje me disseram que eu devia consultar um psicólogo ou psiquiatra, alguém que ouvisse a minha alma com ouvidos científicos, apetrechos e medicamentos, patologias, medicamentos, prozacs da vida urbana, euros, francos e dólares, e a Angela Merkel. A solução reside em nós; igrejas e seitas. A resposta está no Senhor; política e hierarquias. A saída está à vista; cegos com bengalas de bambu, pandas... extinção.

As minhas relações estão cotadas em bolsa, e há quem jogue com elas, quem faça especulação, o seu valor nunca vai ser atingido porque ao contrário da Grécia eu ainda acredito que sei fazer bem à primeira, ainda sei amar, como um adolescente virgem que coleciona discos de vinil dos Doors. Hoje sinto-me tão bem como da primeira vez que percebi que o meu pai ia morrer e eu ia passar toda a minha década dos 20 sem uma referência, Homem. Gostava de ser um Homem, gostava de ser capaz de fazer o que os Homens são capazes de fazer. Um Mandela do Amor, 20 anos preso numa cama com a Mulher que, num dia de primavera (ou inverno chuvoso e cinzento), dá à luz o meu primeiro filho (ou filha, ou gêmeos).

Em tic-tacs, tic-tacs, aquele tempo escoa nas nossas unhas sujas de lava; a terra negra produzida pelo vulcão das nossas noites de paixão é agora a nossa cama. E não nos vimos (cegos) orgásmicos (estéreis), eu em ti, tu em mim. Chegamos tão tarde que parece desafiar a Eternidade.

Um beijo.

 

Por vezes afasto-me como uma pedra de gelo foge do fogo. Derreto-me em líquido incolor desprovido de vida (desnutrido). Sei como isso te magoa, pois entre o frio e o húmido (relação próxima e quase sempre indispensável), o nosso calor não é suficiente para evaporar as espessas memórias (íntimas).

A nossa proximidade é como a de envelope e selo. Cada vez mais rara e gerada por saliva e gestos sexuais intensos (língua na pele de papel). Não acredito em ti quando dizes que fingimos e boicotamos a rápida e quase sangrenta vontade que temos um do outro. Animais em cópula enganam a natureza pois o látex é a barreira que nos separa.

O Teatro fica-nos bem. Eu de fato escuro, gravata e sapatos brilhantes, tu de vestido vermelho, laçarote na cabeça e perfume.

De braço dado como um cego e um surdo, pela avenida da liberdade (poluição suja-nos as meias), até ao teatro nacional, (diogo infante despedido, notícia de primeira página) pseudo-intelectuais de esquerda oferecem-nos flyers de comícios, buffets de merda e isqueiros que não funcionam.

E tal qual burguesia, no todo da nossa importância, sabes que a nossa cama é um trono sem rei nem rainha. No palácio do cadaval em Évora acordamos juntos: "Olá, eu sou o Pedro".

Um beijo.

 

Um dia, o meu avô, que era poeta de profissão e pastor de ofício, disse-me que o tempo não é mais do que o esperar que a lã das ovelhas cresça para poderem ser tosquiadas.

Ao longo da minha curta vida, tenho assistido a ciclos, por vezes dentro de outros ciclos, o que me leva a crer que a própria existência é um ciclo. Devo estar a tentar encontrar uma razão para a existência como todos os românticos desesperados.

Quando a minha máquina de lavar roupa se avariou, o mundo caiu em cima de mim; duas semanas antes, a minha mãe tinha-me telefonado a chorar, completamente desesperada, porque a sua máquina de lavar roupa tinha avariado. Eu não dei muita importância, "tudo se resolve", disse eu. No entanto, foi difícil de engolir, a tecnologia deu cabo do meu dia, acabando sozinho numa casa que não é minha, esperando que o programa de lavagem terminasse... tudo isto com um copo de vinho que não era meu...

E tu, a tua máquina de lavar roupa alguma vez te destruiu o dia? Alguma vez a roupa suja de cama usada perpetuou no teu mundo sem nunca a poderes voltar a lavar? O desespero de umas meias sujas, envelhecendo ao canto de um WC (quase público); a camisa preferida, eternamente cansada, amarrotada como a pele do sr Elias, amolador de facas e criador de quadras populares?

Por fim, o conforto, sentado na sala, escrevo esta carta, e na varanda a roupa seca; o perfume de roupa lavada invade este espaço misturando-se com o calor das máquinas criadoras de sonhos. O conforto de saber que agora é esperar que o Tempo faça o resto. Inicia-se o ciclo novamente.

Um beijo.

 

 

Voltei da minha ausência.

Depois de meses em terrenos inóspitos, voltei a encontrar a flor de amendoeira. Frágil e virginal; o amor origina uma casca dura e difícil de quebrar  mas que no seu cerne conserva a semente. Posso chamá-la feto?

Num outro dia, que já não recordo quando, encontrei um velho amigo, mais velho e mais cansado. Perguntou-me pela vida. Eu respondi que ainda a procurava, pois ela escorre entre os dedos como areia fina (uma ampulheta). Disse-lhe que procurava uma forma de a conter nas mãos. As minhas mãos estão calejadas como as mãos do livro A Aparição. Lembras-te dessas mãos?

A minha caligrafia está cada vez mais imperceptível e temo pelo dia em que ninguém me entenda. Ou melhor, que ninguém me consiga ler. Consegues imaginar pior destino do que ser invisível para o resto do mundo? Detesto pensar que pareço este ou aquele, porque o que escrevo é muito magro e esquelético, e preciso de muletas, um raquítico na semântica e na gramática. Gramaticalmente falando, sinto-me uma daquelas classificações que os professores universitários, sem talento na Escrita, inventam, tentando utilizá-las como armas brancas, pois sabem que ninguém vai conseguir defender-se de um palavrão como artigo indefinido, plural ou singular, masculino e feminino no advérbio de modo... E eu sou um poema...

Grito tantas vezes o teu nome que, por vezes, penso ser um eco. Lembro-me quando me dizias que eu podia ser o Humberto, e riamos na relva do jardim, no Outono em Sintra (como detesto Sintra e o Algarve).

Voltei para a mesma cabana onde me deixaste da última vez que nos encontramos. Agora tenho canalização, ligação direta do meu cérebro ao esgoto, um outro cano que liga os meus impulsos primários a um robot de cozinha, um cabo elétrico que condiciona os meus pensamentos, aqueles que fogem do que é aceitável. Mas agora, falando de coisas mais sérias (e quando digo sérias, não falo de política nem da crise, ainda anda por aí?), conta-me coisas da tua vida. Sei que participaste em encontros arqueológicos literários. Como foi? Muitos poetas mortos e muitos escritores mal amados? Estou neste momento a arranjar-me de tantas saudades que tenho de te ler, de saber cada vírgula e pausa que tens criado. Agora que voltei, e a Primavera parece um Inverno a tocar no Verão, espero poder encontrar-te novamente, flor no cabelo, sorriso amplo como o pôr do sol.

A vela está a queimar o pavio. Amanhã faço uma lâmpada de azeite e escrevo-te novamente. Natural...

Um beijo.

 

Lisboa, 21 de novembro 2024
um Velho Pervertido