a sombra da maçã de Adão

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à noite quando não tenho sono nem vontade de me deitar, olho um espelho que tenho na sala e tento perceber o que me reflete. gosto de imaginar que mostra quem realmente sou, que a luz, mesmo fraca e sem osso, consome na totalidade cada poro, cada pêlo, cada ruga, todas as imperfeições, revelando a beleza da Mulher. as minhas mãos estão mais suaves do que há quinze anos. as unhas, essas enxadas da carne, hoje estão em ponto pérola. trato-as como se fossem jóias, tal como aos dentes. houve tempos em que sentia que o meu queixo era feio, másculo, no entanto isso mudou e esta face de boneca de porcelana que se desvenda no espelho da sala, tem memórias (memórias são merdas que lembro; recordações, as memórias que quero lembrar),
por vezes deformadas. gosto de recordações mas há memórias que me martirizam a cada nova estação. o quente fogo do verão, a queda e decrepitude do outono, silêncio e chuva de inverno, felicidade que brota num botão de rosa na primavera, embora todos saibamos que acabará por cheirar a morto. é impossível gerir este Passado conscientemente, tudo é filtrado, analisado, catalogado por um algoritmo genético que, por vezes, encrava, dá erro, reinicia, não inicia, estrada sem saída, casa sem janelas, mulher com pénis.

este espelho era da minha avó, morreu quando eu era nova demais para poder sentir a morte, no entanto, tenho algumas memórias e recordações. ensinou-me a pintar as unhas, o cheiro do verniz acompanha-me desde essa altura; a pinça para tirar aqueles pêlos pretos no buço, foi ela quem me ensinou a manusear; temperamental e utopicamente perfeccionista, como uma senhora deve ser.

gosto do meu pescoço, tenho orelhas lindas, todos os homens o dizem:

- tens orelhas desenhadas por Deus, tão lindas. Adoro foder este teu cú, tão apertado... - gosto que me elogiem, que me beijem o pescoço, que mo lambam; mordidelas no lóbulo da orelha. gosto quando os homens olham para mim e para o meu rabo pensado que eu não vejo. nos transportes públicos, no elétrico ou no metro, há sempre um ou outro Pervertido que se roça na minha coxa e eu finjo que não vejo e que não sinto. confesso o meu lado de pervertida, escondo dentro de mim uma putéfia, das mais reles, suja e perigosa como esgotos.

à noite quando não durmo, fantasio despentear este longo cabelo, vestir-me de puta e procurar um macho que me possua e me use, para logo de seguida, assim que se venha dentro de mim, me abandone no escuro de um beco ou numa casa de banho pública do Largo do Carmo. quero ter a coragem de me vender num bar de alterne, banhada em perfume barato e maquilhagem densa e espessa, como uma segunda pele ou uma máscara de carnaval de Veneza, sem expressão, sem sentimentos, deixar que qualquer homem faça de mim o que bem entender e lhe der prazer.

ontem durante a tarde, na baixa pombalina, escrevi o meu número de telefone no confessionário da Igreja de São Cristóvão - quero pecar, nove três, cinco oito sete, dois dois três nove - ninguém telefonou.

quando a luz entra pelas brechas dos estores do meu quarto há pó nos raios de sol, eu cuspo nesse vazio desejando que as gotas de cuspe se transformem em diamantes lapidados ou em topázios brutos e rudes (a este desejo de jóias chamo-lhe Solidão).

desde a adolescência, essa penitência severa, que os desejos de penetração, torturam-me incessantemente com masturbação compulsiva, ficando eu, só, usada e vulnerável em cada ato de perversão, sozinha ou com homens mais velhos. apaixonei-me por homens com idade para serem meus pais, esses Homens que, mal casados, procuram aventuras em terras desconhecidas, forasteiros perdidos em desertos sem amor.

à noite quando não tenho sono e o vejo olhando com fome de mim, o meu coração bate tão forte, muito forte meu amor. os lábios que me lambem sem nojo e sem pudor, provocam-me um arrepio de fantasma recém nascido. a sede e a fome são gémeos siameses em mim, e ele, lindo e forte, pénis ereto que me aguça o desejo, sacia a insatisfação. ai, como eu te quero chupar meu amor! como eu exploro o prazer e sinto, tu em mim. poema constrangedor o nosso amor. o desejo é proibido e impossível de sustentar, mesmo assim peço-te apenas uma noite de entrega. fode-me como se me amasses, quero que me lambas os mamilos enquanto me penetras lentamente, mas bem fundo, meu amor! beija-me a boca quando sentires o rugido do prazer prestes a fazer-se ouvir, mas espera por mim, espera por mim meu amor. o teu respirar quente no meu pescoço, a tua voz no meu ouvido: estou-me a vir - e eu venho-me contigo, neste sonho que carrego dentro do meu peito como um cofre acorrentado, impossível de violar.

à noite, quando sozinha, observo os contornos da minha sombra na parede vermelha, percebo que tu estás em mim e sofro, ao ver a sombra da maçã de Adão.

Carcavelos, 28 de setembro 2015
um Velho Pervertido