Silêncio

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O aroma que se sentia no quarto recordava-o da casa onde crescera. Não era agradável. Era o cheiro de ensopado de borrego, carregado de cravinho, tal como ditava a receita da avó. A família reunia-se em volta da mesa de madeira e todos falavam ao mesmo tempo. Ele escrevia numa folha branca, todo aquele tempo que separa a memória do presente. Sem qualquer ambição de escritor profissional, definhava na ânsia de fazer o tempo parar. Ao menos que abrande, pensava... Quando o conheci já era velho. As memórias estavam ressequidas e amareladas como paginas de um antigo livro raramente lido. Trocámos palavras e ideias sobre o estado actual do mundo. Que miséria esta, comentava com o seu semblante de velho do Restelo. Viver pensando no que poderia ter sido, no que poderá ser, no que inevitavelmente, será... Tinha agora um computador, daqueles modernos com maçãs. Dedilhava as teclas como quem toca arpa. Com a paixão de quem acaricia e sente uma mulher. Disse-me que lamentava algumas coisa que não havia feito durante a vida. Não mencionou nada do que alcançara.


Saber que o tempo está prestes a acabar pode ser deveras angustiante, mas pior que isso é saber que ele não volta e os erros que foram cometidos não poderão ser apagados, modificados... Remorsos. Não existe coisa pior do que viver carregado deles. Sentem-se nos ossos. Os médicos dizem que existem formas de aliviar a dor. Olha que sa foda, dizia-me ele em momentos de revolta. Conforme ia partilhando todas estas lamentações, eu recordei o dia em que o meu pai disse que tinha cancro. Restava apenas preparar a cama para que ele pudesse repousar. Tinha dezassete anos quando isso aconteceu e, o livro verde, a enciclopédia médica que havia ditado a sentença, escondi numa caixa que ainda hoje não sei onde está. É desta forma que se tentam apagar pesadelos. Não resultou.


Naquele tempo as pessoas morriam da doença. Hoje ainda assim acontece, no entanto, as curas para mazelas da vida - como impotência e coisas do género - evoluem a passos de gigante. Dou por mim esperando que a terra prometida seja visível no horizonte. Mudei de casa e, quando me empoleiro na janela da cozinha, consigo ver o oceano. As nuvens escurecem, o sol brilha, o tempo passa mas esse mundo maravilhoso teima em não se mostrar. Ela diz que eu sou um pessimista e insatisfeito com tudo o que me rodeia. Pois olha! O que tenho não me chega. Quero mais do que todos os sonhos do mundo. Desejo muito mais do que a utopia da felicidade.


Um velho será Sempre velho. Desde o nascimento até à inevitável morte e eu aguardo, no silêncio.

Lisboa, 26 de abril 2018
um Velho Pervertido