O Homem espacial

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Para ele o universo cabia numa casca de noz. Condensado em lagrimas de estrelas e cometas, assim o tempo fluía. Tempo... um luxo do qual ele não poderia usufruir pois a sentença - mortal - havia chegado quando ainda era um jovem cheio de força na verga. Anos, horas e minutos estavam contados. Não em pequenos grãos de areia mas sim em estrelas cadentes que marcavam o seu destino, um breve instante no cosmos intemporal. O juiz - aquele que dita a Vida - havia sido peremptório, não havia matemática capaz de o salvar.


Na tarde de outono, quando a fraqueza conquistou a perna esquerda, conheceu-a e apaixonou-se. Os tremeliques inerentes à paixão foram confundidos com a sua enfermidade. O amor não passa de uma doença degenerativa - reconheceu. Os médicos, especialistas e até cientistas de coisas estranhas, não conseguiam explicar o que se passava. Amor é difícil de equacionar, diziam com um olhar cabisbaixo. Um semblante derrotado face aos poderes cósmicos do acontecimento. Não desistiu. Nas raras ocasiões que se levantou da cadeira foi apenas para provar que o Amor existia.


Sozinho na sala de estudo, a grande ardósia negra era a tela. Nela já havia transcrito várias imagens que, até então, apenas existiam na Imaginação. Nesse local, onde as fantasias de criança se misturam com a pesada realidade da existência finita, esboçou sorrisos em equações, gargalhadas em incógnitas integradas entre o zero e o infinito. Naquele dia de outono, consciencializou-se Dela e as formulas matemáticas deambularam em frente aos seus olhos. Apesar da segunda lei da termodinâmica postular que a entropia tende a aumentar - assim ele ensinava aos seus alunos -, os números, fracções e variáveis, organizaram-se segundo uma ordem lógica. O giz era branco e os traços precisos. Inicialmente duvidou da certeza que testemunhava. Não pode ser! -, pensou. Apagou a matemática que descrevia o Inexplicável. Involuntariamente o braço esquerdo, o que ainda funcionava apesar de fraco, re-escreveu a miragem que contemplava. Era verdade! Seria impossível chegar ao mesmo resultado a não ser que estivesse a perder faculdades e deambulasse entre erros - coisa impensável considerando o seu génio - ou fosse Ela uma feiticeira do cosmos, brincando com as mais preciosas regras matemáticas.


Fez o que qualquer homem faria na sua posição. Aceitou o desfecho e resolveu assumir as consequências. Estava mais que provado que o Amor Eterno era inevitável e por isso teria que o viver na plenitude. Flores, poemas e canções. Mãos dadas e segredos partilhados. Vidas envelhecendo juntas como passas de uva comidas a cada badalada de um novo ano.

Tal como as formulas agora esbatidas no grande quadro da sala de estudo haviam previsto, o seu corpo envelheceu. É duro ter consciência. É doloroso carregar o peso do que passa e do que foi vivido. Um dos axiomas do teorema que havia criado enunciava que o passado permaneceria no seu sitio. Lá atrás, onde foi vivido. Existia um pequeno factor de correcção que deformava este axioma; chamou-lhe Saudade (é tão frágil e bela). Quando as iterações conduziram o resultado ao limite, levantou-se da cadeira onde havia passado todos os anos contemplando-a e estudando o Amor Eterno. Não olhou para trás. A estrela mais brilhante do cosmos sorriu-lhe e abriu o seu coração. A luz envolveu-o como uma aura. Assim permaneceu, existindo na eternidade provada pela Equação do Amor.

Lisboa, 18 de março 2018
um Velho Pervertido