Na eventualidade de perder-Me

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É ingrato pensar que na eventualidade de perder-Me, dificilmente terei a consciência de tal desgraça. Essa possibilidade assusta-me, ao ponto de duvidar da vida. Não da vida como existência, mas sim da Vida, aquela que tem luzes brilhantes e pequenas faíscas nos olhos. Na eventualidade de perder-Me, espalharei pedaços de pão pelo caminho, na esperança de que a Fome seja fraca e não o consuma. Triste desejo, no mundo onde ela arreganha os dentes a gotas de sangue e pequenos restos de pele morta.


Deixarei um testamento, lacrado, escondido num sobreiro de cortiça grossa e cansada. Poderei eventualmente criar uma canção na casa de um amigo músico. Obrigatoriamente terá de ser um artista de confiança, que não tente lucrar com o triste desaparecimento deste seu confrade. Nessa música, irão brotar das notas, todas as pistas necessárias para que possa encontrar-Me. Espero perder-Me num final de semana, uma sexta feira, para, tranquilamente, reaparecer a tempo de voltar ao trabalho na Segunda. Quem tem contas a pagar e caprichos por viver, não pode dar-se ao luxo de perder-Se, assim, sem mais nem menos... Deve, no mínimo, preencher um requerimento, telefonar para seu local de trabalho com 72 horas de antecedência e, finalmente após encontrar-se, apresentar um documento autenticado por um médico - ou um sacerdote reconhecido - comprovando a Perda.


Na eventualidade de perder-Me, quem me ama ficará preocupado e, num desespero de vitima, convocará forças militares de salvamento e as enviará à minha procura. É bom ser amado. É bom sentir que a chuva que nos toca, nesses momentos de perda, se transformará nas lagrimas de alegria desses que nos amam e procuram - e eventualmente encontram.


Na eventualidade de perder-Me, confiarei na bússola que sempre me acompanha no coração. Este tic tac, por vezes irregular, devido a vicissitudes da vida e do Amor, é a ultima ferramenta que deverei utilizar para encontrar-Me. O uso do coração é perigoso, é apaixonante!

Se perder-Me junto ao oceano e pela beira mar deambular esquecido de Mim, certamente aquela garrafa de vidro - de um qualquer vinho alentejano - com uma carta bem dactilografada e com pistas preciosíssimas sobre como Recordar, será - por obra do Destino - depositada junto a meus pés. Que se fodam as meditações e o viver o presente, quem serei eu se não me Encontrar? Quem serei eu sem o passado, sem ti, sem eles e elas? Sem as bebedeiras e as tristezas, o sexo e o amor? Serei o quê sem esse sorriso que esboças sempre que me vês. Que posso ser eu se não me reconhecer num espelho - e são tantos os dias em que isso é a Verdade.

Lisboa, 08 de fevereiro 2018
um Velho Pervertido