Mendigo de olhos verdes

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Os seus olhos verdes iluminavam o bairro. Os dias nas ruas eram bastante solitários e a cama construída com velhos cartões e alguns lençóis que foi recolhendo de contentores de lixo era ingrata e penosa. As horas eram longas durante a noite, principalmente no inverno, quando o frio teimava em fazer-lhe companhia.

- Ei jovem... Arranja-me uns trocos. - dizia-me todos os dias quando por ele passava a caminho da cidade.Ao longo dos anos fomos envelhecendo. Os cabelos foram caindo e os poucos que restaram eram grisalhos e frágeis.

Por vezes eu cedia e oferecia-lhe algumas moedas. Não muitas, o suficiente para me sentir em paz com a consciência. A sua história não era conhecida no bairro. Muitos diziam que era viciado em heroína, outros diziam que era um vidente e conhecia o futuro. Para mim era apenas o homem dos olhos verdes. Não tinha nome, não tinha vida; apenas uma existência e uma presença constante naquele chão de rua. A intensidade dos seus olhos eram a única característica que nos recordava de que se tratava de um Homem.

Ao longo dos anos fomos envelhecendo. Os cabelos foram caindo e os poucos que restaram eram grisalhos e frágeis.

- Ei jovem... Arranja-me uns trocos.

E as moedas escorriam da minha mão para a dele. Uma mão envelhecida, pele grossa e suja.

No dia em que desapareceu do bairro, ouvi comentários no bar da cooperativa.

- Foi preso, dizem que violou a vizinha que mora perto do jardim infantil.

- A velhota? Deve ter uns sessenta anos, não?

- Sim. Parece que ficou bastante mal tratada.

Anos mais tarde, enquanto sentado num banco de pedra que existia perto da árvore mais antiga do bairro, passou por mim um velho. Passos lentos e instáveis, olhar no chão buscando o próximo passo e mãos caídas como que desistindo da vida. Todo um corpo cedendo à gravidade. Quando nos olhámos nos olhos rapidamente o reconheci. Os olhos verdes, vivos e esperançosos, presos a um corpo decadente e algemado a uma alma vacilante.

- Boa tarde. Como está? – perguntei.

- Olá jovem... o que dizem sobre mim é mentira.

- Eu sei que é mentira. Dizem que os olhos não enganam.

As drogas haviam-no deixado num estado lastimável e na noite em que a polícia o encontrou desmaiado na berma da estrada levou-o para o hospital. A demência apoderou-se dele, e durante anos, preso num hospital lá longe na capital, lutou lentamente contra dragões e miragens. Eventualmente os médicos jogaram as armas ao chão e libertam-no. Tal como um animal criado em cativeiro que é solto numa selva desconhecida.

Embora já não viva no bairro, nas poucas vezes que lá vou ainda o encontro, no mesmo local, na mesma cama improvisada.

- Ei jovem... dá-me umas moedas.

E eu pago o preço que tenho a pagar para poder olhar nos seus olhos verdes.

Lisboa, 07 de julho 2016
um Velho Pervertido