Memórias e cerejas

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Amadureci mais um ano, e parece que agora sinto os efeitos secundários. O fascínio tem vindo a diminuir, a intensidade das relações é mais fraca, como se as emoções e afetos se mantivessem num banho-maria que por vezes arrefece drasticamente. Outro dia recordei-me de uma situação que vivi faz agora uns quinze anos. Observada a esta distância de tempo é até romanticamente pura e infantil.

Hoje em dia este meu cérebro é sujo, tem manchas e cicatrizes. O coração é um tipo bera, com tatuagens, barba comprida, dentes amarelos e unhas sujas. Daqueles tipos que parecem ter tido um passado exigente. Os caminhos que percorremos, por vezes descalços, magoam a planta sensível do pé. Quando finalmente criamos calo, já as expressões faciais de dor e raiva nos marcaram com rugas terríveis.

Ela tinha catorze. Até para a minha imberbe moral e consciência do que é certo e errado, esta situação não me parecia correta. Vá lá! Se ela tivesse uns dezasseis anitos... Era muito bonita, uma miúda simpática, inteligente, uma senhorita. Parecia mais velha do que realmente era. Uma criança curiosa e eu, nos meus verdes vinte anos achava piada ao facto de ela me procurar como homem. Numa marcação serrada procurava-me nos locais mais improváveis. Num bar com amigos; perto da minha casa onde por vezes aproveitava o sol e lia; a caminho da cidade, pois eu vivia num bairro perto do centro.

Foi precisamente nessa altura que me ofereceram um telemóvel e o mundo começava a tornar-se mais pequeno, mais conectado, mais fácil. Obviamente trocamos números e ela enviava-me os clássicos SMS:

“Que estás a fazer? Queres ir à esplanada do Jardim?”

Ou

“Gostava de te ver, não estou contigo já faz tanto tempo.”

A atenção é boa, o nosso ego enche como um balão (não esquecer a fragilidade e instabilidade inerente a esta condição!) mas a luta interna era terrível. As hormonas que fervilham no sangue, a ausência de uma rotina sexual, o desejo e a fantasia que crescia cá dentro, não me deixavam executar as tarefas mais simples da vida tal como… dormir.

Estava muito calor, o sol queimava para além dos trinta e seis graus e eu suava em casa. Nessa altura em que a barragem ainda não havia sido construída, o ar era seco e desesperante ao respirar.

“Que calor, que estás a fazer? Queres ir à ribeira?”

- Miúda do Demo! Sempre a tentar-me com propostas maravilhosas! – Pensei para comigo.

Ponderei e pensei que, afinal de contas, poderia estar a fazer uma tempestade num dedal, e claramente eu iria conseguir controlar-me, mesmo que a sacana da miúda me tentasse subornar com beijos e carícias.

Ao final da tarde, passei perto da casa dela e fomos até à ribeira. Conversámos bastante sobre o modo como a água escorria pela rocha.

- No inverno o caudal é bem maior - dizia-me ela.

- Trouxe uma coisa para nós – e levantei-me em direção ao carro. – Olha… - e mostrei-lhe um saco cheio de cerejas frescas. Os seus olhos sorriram.

- És tão querido.

E nessa tarde, abraçados junto à ribeira, comemos cerejas, ela cuspiu caroços e ainda recordo o seu perfume.

Anos mais tarde, mais velhos e azedos, embebedamo-nos fortemente e beijamo-nos numa vontade de carne. Os hálitos não eram frescos nem agradáveis, as línguas eram ásperas e rancorosas. Nunca mais a voltei a ver.

Sei que casou e agora é mãe de uma menina, mas para mim será sempre a miúda com quem comi cerejas perto da ribeira.

Carcavelos, 06 de abril 2016
um Velho Pervertido