Solestício

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- Eu quero é que o solstício se foda - gritou e atirou o copo contra o retrato de Luiz Pacheco que mantenho pendurado numa das paredes da sala.

Já nem sei porque começou esta discussão. Conversávamos sobre o sol e o calor, a importância de relações afetivas desprovidas de sexo. Apenas um abraço carinhoso, um beijo terno na face. Uma mão entrelaçada na outra. Sim, tudo isto é importante, diria até, essencial para o bom funcionamento do espírito (esse sacana egocêntrico). O turvamento dos dias, por estímulos inebriantes da vida, perturbam a afetividade. Os afetos, esses parasitas que alojados no coração, extremamente viciantes e difíceis de abandonar, são igualmente frágeis e, chegado o momento, quando ela grita que a mudança de estação é mais uma das minhas desculpas para evitar assumir responsabilidades pelos meus atos, toda uma geração destes ácaros do amor falecem. Mortos e em decomposição, por ali jazem. Os esqueletos elevam-se e, mesmo à vista desarmada, identificamos as mentiras, as inverdades e as omissões.

Nas tardes que passávamos na areia, na praia de Carcavelos, olhando o mar, bebendo vinho e lendo livros impopulares, partilhávamos um Amor extremo. Semelhante ao de filmes clássicos como Casablanca ( que nunca assisti ) e fazíamos algumas promessas de curto prazo:

- Próximo fim de semana iremos viajar. Não é necessário ser muito longe, basta mudar de ares. - dizia-me ela durante uma pausa da leitura.

- Vamos a Peniche, porque não? - e eu fechava o livro, sorria e beijava-a.

Nas tardes de domingo, Monsanto parecia ser um paraíso e, sobre uma esteira torrávamos ao sol, ativando toda a vitamina D necessária para mais logo, durante a noite após o jantar, fazermos amor que roçava a perversão pela forma como nos desejávamos.

E a vida ia passando, neste compasso de quatro por quatro, ou dois por dois, consoante o cansaço e o Desejo.

Um dia, quando ela voltou a casa, já cansada e a barafustar com o trânsito e o tempo perdido em esperas, as arrelias de circunstância, não me beijou nem disse que me amava. Pequenos vasos sanguíneos, insuflados de sangue, marcavam o branco dos seus olhos.

- Irei deixar esta casa. A metamorfose iniciou-se quando ejaculaste dentro de mim. O fluído que me inundou fez-me sentir a Verdade que não me revelavas. A insegurança não é propriamente uma das características que valorizo num Homem. Pelo contrário, repugno a fraqueza, o sémen morto e sem vivacidade que dentro de mim depositaste enoja-me. Sinto repudio por saber que os beijos, sim os beijos, até esses, sabem a acre. O sabor de morto na língua! Não consigo tirar este sabor. Irei deixar a tua vida. A tua sombra é falsa! Escondes as asas tão bem, meu querido. Eu sei que o monstro que por baixo da pele se esconde aguarda um momento especial para se exibir com toda a sua exuberância. Não estarei cá nesse momento. Não quero estar. Que as escamas te caiam, que os teus olhos ceguem com cataratas, que as asas murchem e pendam mortas pelas tuas costas. Os dentes, que apodreçam e não sejas capaz de te alimentar. Não conseguirás sugar o Amor de mais nenhuma vitima. As unhas que se cravem na tua própria carne e a dor seja intensa e constante. Mas, não quero que morras, não, isso não meu Amor! Quero que sofras e não percas a memória. O meu cheiro ficará para sempre no teu corpo. A lembrança do nosso sexo, tu dentro de mim, tornar-te-á infértil, impotente, letárgico, desinteressante...

A porta fechou-se nas suas costas. Os livros, que cobertos de pó testemunharam tudo, reescreveram-se, exceto um que, em sinal de protesto, permaneceu em branco.

Lisboa, 26 de março 2016
um Velho Pervertido