Espirros e balelas

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Bebemos e dançámos até às três da manhã. Não estávamos bêbados.

Quando o silêncio ocupou o lugar da música, pedi-lhe um cigarro e um beijo. Um beijo no canto da boca como que numa provocação acidental. Sorrimos. Dissemos adeus.

Na rua, notei que o chão se assemelhava a uma manta de retalhos. Um tampa de esgoto, uma grelha em ferro fundido, manchas de asfalto de diferentes cores e a lua. Nessa noite estava branca e pequena, sabia do nosso segredo mas não espelhou essa certeza, apenas iluminou o caminho até ao local onde havia estacionado o carro. Espero que não haja polícia no caminho para casa, foi o que pensei. Não havia nenhuma operação stop. Assim que me sentei para escrever esta história, relembrei o que ela havia dito. Que o fogo não acendia cigarros, que as estrelas do mar não são tão mágicas quanto parecem, são sim aborrecidas e sem sangue na guelra. Há mulheres assim, disse ela. Eu concordei.

O verniz vermelho nas unhas, eram o perfeito disfarce para as suas garras de predadora. Quando a abracei ela não ofereceu resistência e, nesse momento, o Tempo. Eu, minutos. Ela, Eternidade.

Talvez seja a penumbra e a música que nos envolve. Os cheiros que se misturam e se desejam, ou apenas, um tesão de macho e de fêmea que se aguça como uma agulha neste ambiente de luxúria.

- Bebemos um copo no bar? - perguntei-lhe junto ao ouvido como confissão de um pecado.


Os copos são velhos baços e lascados. Têm histórias. Bocas, dentes e lábios que por eles passaram e beijam-nos a cada golo do precioso vinho. Avaliámos e testámo-nos. Análise de qualidade e de resistência, foi o que se passou nos minutos seguintes. Eu decorei o rabo dela. Ela sorvia as minhas balelas. Os olhos cruzavam-se mas não se conheciam, apenas se desejavam. É neste acaso de ambientes que as pessoas constroem pontes. Por vezes são frágeis e de madeira rasca, outras vezes porém, são de metal fundido tal como a 25 de Abril e aguentam intempéries. De qualquer forma, não iríamos viver tempo suficiente para o saber. A nossa ligação teria a duração de orgasmos, a força de ejaculações. As dores de um parto.

Não irei argumentar fenómenos de culpa ou destino, isso são merdas. Secas e sem substância. O fatalismo deste interesse súbito está inerente à condição do mesmo. Tudo o que é intenso e gritante, é muitas vezes passageiro como uma chuva durante o Verão. Sabia que no novelo confuso que é o destino iriamos criar nós e enlaces difíceis de desmanchar (desemaranhar). Iríamos, possivelmente, destruir-nos durante esse processo. Tentei abstrair-me das consequências dos interesses impulsivos, apenas imaginei como seria ter aquela mulher nos meus braços. A sua pele sobre a minha e o respirar agudo ecoando no quarto. A marca de suor do seu rabo na bancada da cozinha. As pernas delas que me envolvem como tentáculos. O sexo à janela enevoado pelo pervertido desejo de ser observado por vizinhos. Toda a intensidade que existe na imaginação é amplificada. Talvez seja esta cultura que nos afoga em culpa e falso conservadorismo que nos impede de experiênciar o desejo na sua plenitude. Sim é certo que ela é casada. Também é justo afirmar que devemos respeitar compromissos (monogâmicos) que assumimos com a nossa cara metade - ou até mesmo cara um terço - mas não é de todo saudável. Os desejos acumulam-se sob forma de rugas, obstipação, peidos, roncos durante o sono e todas essas maleitas. Concluí que é por isso que envelhecemos, por acumularmos e bloquearmos esses desejos - arriscar-me-ia a chamar-lhes desejos de paixão - e assim vamos aguentando durante uma vida (ou uma relação). Bem sei que amanhã terei essa mulher nos meus lençóis e só desejo não me vir rapidamente como um espirro indesejado.

Lisboa, 16 de março 2017
um Velho Pervertido