Vida desperdiçada

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Um sorriso que apenas se esboça nos lábios, pois os olhos, mantêm-se inalterados na inexistência da felicidade apregoada. É este o seu semblante. Começa pela manhã, com pequenos rituais, cujo efeito esperado é a harmonia com os astros. O sumo de limão com um pouco de água é bebido lentamente seguido dos dez minutos de meditação. É uma pesada penitência, a de manter a imagem de Humano, cuidadosamente trabalhada no espelho. A pele da face que envelhece e desenvolve pequenas rugas, tal como terra lavrada. O cabelo que cai ou perde a cor, tal como feno que seca ao sol. É a decomposição das histórias em fragmentos de idade. Quando a novidade toca à porta ele abre sem hesitações recebendo-a de braços abertos. O coração, por seu lado, continua selado com cadeados correntes e amarras.


Sempre cumpriu com os requisitos sociais. Um emprego, boa aparência e modos educados, seleto até! Culto e sabedor de interessantes matérias. Excelente vida social. Tantos amigos e amigas. Amantes e amores. Família dedicada que o procura em todas as ocasiões festivas. Apenas os seus olhos castanhos espelhavam a inexistência da apregoada felicidade.

Francisca foi o amor da sua vida. Os anos que partilharam foram de grande crescimento mútuo. Haviam descoberto as pequenas partículas de que é feito o amor. Lentamente, processualmente, erigiram uma casa aparentemente inabalável. As fraquezas eram impossíveis de observar do exterior. Os acabamentos eram perfeitos e de alta qualidade, no entanto, quando entravamos pela porta principal, observavam-se pequenas fissuras. Um ou outro canto com um pouco de humidade. Os degraus não eram regulares. Era necessária perspicácia para identificar as pequenas imperfeições. Ambos tiveram alguma dificuldade em percebe-las e sempre que o faziam apressavam-se a corrigir, a remendar.

Alguns anos passaram e um dia, quando acordaram na cama que partilhavam, olharam-se e perceberam... A aparência do seu amor havia sido criada por forma a cumprir com as expectativas de quem o observa de fora. O interior havia sido desprezado, a pressa de cumprir com o esperado, suprimiu toda a perfeição que poderiam ter construído dentro desse casulo.

Não conversaram sobre o assunto. Os dias fluiram nesse ambiente danificado e remendado. Os seus olhos castanhos entristeceram e por vezes, em dias de maior pesar, secavam e arranhavam. Era uma sensação horrível. Francisca deixou de comer, tornou-se magra ao ponto dos ossos rasgarem a pele. A dor que se vivia naquela casa foi crescendo imensuravelmente e as paredes incapazes de a conter. Pelas janelas e portas começou a transbordar essa dor. Quem de fora passava sabia perfeitamente do que se tratava. O cheiro, a cor e a consistência daquela estranha matéria denunciava claramente a putrefação. A dor, que escorria como lava pelas paredes, afastou todos os que acreditavam na perfeição.

Aos poucos tudo se foi desmoronando. Inevitavelmente o amor acabou. Haviam dedicado tanta vida na construção deste pequeno mundo e agora, assim como num suspiro, colapsou. Ele envelheceu abruptamente, parecia agora um velho caquético sem forças nem para respirar fundo. Francisca, continuava esquelética. Sem carne sobre os ossos, apenas a pele a mantinha una. Voltaram as costas àquela casa e de mãos dadas olharam-se uma última vez. Partilharam o mesmo sentimento. A vida havia sido desperdiçada, tal como num coito interrompido.

Lisboa, 27 de maio 2016
um Velho Pervertido