Voaram juntos

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Quando já passava das dezassete, Artur entrou no balneário. Estava vazio e fresco, como se o sol não tivesse visitado aquela sala durante todo o dia. Ele estava cansado. Havia passado longas horas lá em cima, de asas bem abertas, a planar pelos céus. Nesse momento, o mundo torna-se pequeno e a curvatura do planeta é a fronteira que o recorda da existência de limites. Artur ama, sofre e sonha demais. Nem poderia ser de outra forma sendo ele um tipo habituado à velocidade e a injecções de adrenalina nas veias da vida. O céu é azul, o sol encandeia e o tempo vai fluindo. Esta cadência é angustiante para quem deseja novidade a cada piscar de olhos. Quando sobrevoa a cidade o tempo acalma, o mar parece uma banheira gigante. Lá em cima, a solidão não se sente. Existe apenas na ideia de que alguém poderia estar a nosso lado e estabelecer o tão importante elo humano. No vácuo a solidão não existe: tenho dito!


O pequeno avião tinha sido construído por ele. Era o planador mais sofisticado do aeródromo. O seu branco virginal e a faixa vermelha em todo o seu comprimento chamavam à atenção de todos os aficcionados dos céus. O habitáculo suporta um só passageiro. Este é o seu santuário, a bolha de vácuo da qual necessita sempre que as tempestades assolam cá em baixo, no chão duro. Para Artur, voar bem lá no alto, como uma ave de rapina, é dos maiores prazeres que tem na vida. Não consegue imaginar a sua existência sem a visão globular do mundo. Perdeu bastante em virtude desta sua paixão. Artur diria que se trata de um investimento, um sonho maior do que ele próprio, um desejo maior do que a sua vontade.


Em criança, passava horas a construir pequenos aviões de papel. Lançando-os do topo da varanda da casa onde vivia, seguia atentamente os seus trajectos. Em adolescente, vivia com a cabeça nas nuvens. Sonhava com saltos de paraquedas, sonhava em planar pelo céu azul e sentir a velocidade da queda arrefecer-lhe a face. Com o seu pai começou a aprender a domar planadores e desde então nunca mais deixou de procurar esse refúgio. Nessa altura fez sexo pela primeira vez e foi no aeródromo de Évora. Junto a um monte de paraquedas que para ali criavam raízes, num canto de um dos armazéns. A miúda era malabarista no circo que visitava a cidade pela altura da feira de São João. Após terem fodido intensamente, até terem ido ao céu e voltado, enrolados em suor e paraquedas ensopados em fluidos...

- Alguma vez voaste? – perguntou ele.

- Não nunca. Penso que não que fui feita para voar.

- Não acredito. Todos fomos feitos para voar! Alguma vez te apaixonaste ao ponto de sentir falta de ar e essa angústia ser a melhor sensação do mundo?

- Sim. Não estou a perceber o que isso tem a ver com voar.

- Mas alguma vez te interrogaste porque te apaixonas?

- Certamente é a nossa condição natural.

- A condição natural é reproduzirmo-nos. O desejo e a fantasia - e o Amor - são artifícios (indispensáveis) para que o mais básico dos atos – o sexo - faça sentido… Voar - tal como amar - é como ir contra a condição natural. É ser mais forte que a própria natureza. É viver o imprevisível e saber que o risco de destruição está presente a cada momento. Voar é amar ao primeiro olhar e, cego pelo impulso, seguir em direção a esse desconhecido.

- Mas isso parece-me uma visão muito romântica da coisa. As relações acabam, o amor seca…

- Exato! E aviões caiem. No entanto, corremos o risco e amamos.

Lisboa, 18 de maio 2016
um Velho Pervertido