Mudo

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Foi semelhante à primeira vez que assisti ao nascer do dia. Na inocência de quem pouco viveu, tudo parece bastante brilhante, e os sons são tão nítidos e puros que quase que podemos jurar que o Paraíso é isto. Recordo-me perfeitamente.

Primeiro um ombro, uma alça que cai e o seio desnudo exibe-se. Muito tímido, mas seguro da sua beleza. Os meus olhos apenas brilhavam esperançosos. Aquela esperança que as crianças cultivam até que a vida lhe dá um pontapé bem assente na Alma ou na Honra.

Recordo-me perfeitamente.

Os olhos atraíam-me bastante, e os lábios eram uma fonte onde eu desejava saciar a sede. As ancas e as pernas. O rabo com aquelas cuecas de renda, tão finas e puras como uma escultura grega: perfeita e quase surreal. Os pelos suaves e o cheiro de mulher excitada. Havia estrelas por este céu escuro e eu, com pequenos toques de dedos, unia-as, criando seres mais mitológicos que a própria mitologia havia descrito. Ela gemia de prazer.

Recordo-me perfeitamente de como as virilhas eram suaves e de uma palidez fantasmagórica. Ela ria muito quando a beijava, ali, naquele pequenino espaço de pele sensível. Os beijos eram intensos, ou como diria o meu velho amigo turco: extremamente intensos. Há pessoas assim, que vivem no extremo da intensidade e menos que isso é nada.

Recordo-me perfeitamente quando as mãos se entrelaçavam e isso era a nossa intimidade no expoente máximo. As orelhas e a pele mesmo por trás do lóbulo eram doces e suaves. Ela também gostava bastante dessas brincadeiras. As tardes passavam rápido, as noites eram um piscar de olhos e as ausências eram morosas como a Eternidade. Recordo-me perfeitamente, de cada queca, de cada posição, cheiro, fluído, gemido, prazer, e no entanto, por mais que esforce a memória, por mais que exercite o cérebro, não me lembro do seu nome. Hoje, nestes períodos em que a vida avança com um ritmo bem diferente do desses tempos, o nome dela é apenas uma fantasia. Ela é apenas essas partes de corpos, essas sensações vividas e, devo confessar, algumas fantasiadas. Não sei o teu nome, mas recordo-me perfeitamente como nos sentíamos um no outro.

Hoje choveu. Esteve um tempo cinzento e as pessoas continuam por casa, pois os invasores ainda não deixaram a nossa terra. A pátria foi invadida e violada, gritam os doidos. Sorri. Sorri como eu. É o que lhe digo quando nos abraçamos na cama. Hoje

vejo-a como um Todo. O seu corpo perfeito e cada curva única. A pele bronzeada, e o cheiro a sexo é uma constante em nós. O seu corpo de mulher não é composto por pedaços eróticos. Toda ela é Una. Não sei se foi por ter desenvolvido miopia e astigmatismo, mas ao longo dos dias, anos, décadas, a mulher foi-se transformando. Toda ela é bela e mesmo as pequenas imperfeições estéticas, são deliciosamente apetecíveis. Os meus novos olhos fizeram-me ver que a simetria é sobrevalorizada. Que tolos são os homens que se limitam a pedaços de carne e de pele, a pequenas formas isoladas; ilhas de erotismo? O movimento da perna nunca poderá ser desconectado do rabo, e as costas que serpenteiam. O cabelo baloiça nessa melodia. Por vezes há um sorriso. Como se fosse proferir algo importante e…não... apenas aquele humedecer de lábios, o olhar que em câmara lenta nos humilha. Toda ela é erotismo. Perdi o interesse pelas palavras, Bela, Beleza... Ela não tem mãos lindas, mas os seus gestos a sua caligrafia, o seu toque... esses sim são os objetos de adoração.

Recordo-me perfeitamente, foi ontem que nos devorámos em quecas loucas e completas. Os nossos seres enfeitiçados um no outro.

E sabes uma coisa?

Ainda sei o teu nome.

Lisboa, 01 de maio 2020
um Velho Pervertido