A última última vez

#

Havia um aguaceiro no seu olhar e um sabor acre nos lábios, como se tivesse feito uma direta e o fígado gritasse por auxílio; as despedidas costumam ter este tipo de efeitos secundários. Nunca havíamos dado as mãos, mas naquela tarde, soubemos que seria o primeiro entrelaçar de dedos. A sombra das nuvens invadia a cidade como uma aguarela e havia o som de folhas de árvores no vento. Demos uma bela queca esta noite — disse ela. Contemplámos o castelo e as pequeninas pessoas que ao longe, lá em baixo, apressadamente, se deslocavam como formigas. Estava aqui a pensar na forma como me chupaste e me vim na tua boca — comentei. Ela gargalhou e um pardal bebeu de uma poça de água suja. Um tipo com aspeto retalhado, pediu-nos trocos e eu recusei, enxotando-o. Ela respirou fundo e eu toquei na sua coxa. Lisboa olhou-nos indiferente. A ponte ao longe era silenciosa, mas nervosa, e as miúdas que por ali bebiam cervejas no miradouro não falavam português. Adorei este tempo contigo — disse ela, pendurando-se no meu pescoço. No final do dia deixei-a em Santa Apolónia e soube que não nos voltaríamos a ver. Curiosidade da coisa, meses mais tarde viajei ao Porto. Bebia um fino nos Maus Hábitos quando reconheci aquele rabo. O longo cabelo escorria pelas costas, como uma cascata iluminada pela lua cheia. Ela topou-me a topa-la e reconheceu-me. Bem me parecia que eras tu, que fazes aqui no Porto? Nunca sais de casa... — murmurou entre lábios, enquanto me abraçava. Trabalho — respondi. Estás com bom aspeto — disse ela, dando-me um beijo na face. Tu também — retorqui. Confesso que fiquei excitada pelo seu toque, o cheiro que não esqueci e o decote. Devíamos passar a noite, juntas — sussurrei-lhe ao ouvido. Numa pensão, perdemo-nos uma na outra com a fome de um condenado, sabendo que o tempo escorria tal como areia em ampulheta. Sentada na estação da Campanhã recordei a madrugada em que fodemos pela última vez. Na próxima semana ela irá a Lisboa e os motéis e jardins secretos irão murmurar os nossos nomes em sincronismo com os arfares e gemidos famintos. Enquanto imaginava essa próxima última vez cheirei os meus dedos ainda com o seu aroma de mulher.

Lisboa, 26 de abril 2020
um Velho Pervertido