A bem suada

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As boas histórias acontecem de noite. Pois bem, esta, nem por isso... talvez nem seja uma boa história. Passa-se numa tarde de verão bastante quente, daquelas que são envoltas em ondas de calor, vindas dos desertos longínquos de África. Os deuses deviam estar encalorados nesse dia. Até os pardais caiam que nem tordos nas estradas, ruas e jardins da cidade. Os cães arfavam ofegantes e as pessoas, as poucas que aventuravam -sea deambular pelas ruas, bebiam cervejas frescas, águas em garrafas enormes, gelados que rapidamente derretiam tornando-se um muco peganhento. O gelo não existia, já se havia transformado em suor. Eu gostava da sombra das árvores nos miradouros mas nem essas sobreviveram. As sombras eram agora pequenas ausências de luz com temperaturas tórridas. Caso caricato, diziam os meteorologistas e as videntes, não se havia conhecido no país temperaturas tão elevadas como estas.


- Adverte-se que os grupos mais frágeis da sociedade, tais como, idosos, doentes e crianças, permaneçam em casa no período de maior calor. Bebam muita água - gritavam os rádios e as letras gordas dos jornais diários.

- Nem quero imaginar como está agora no Alentejo - pensava para comigo enquanto chuchava numa litrosa perto do mar.

O sol brilhava no oceano e centenas de pessoas por ali tentavam refrescar o corpo e a alma. A areia ardia, quase que se sentia a formação de vidro quando por ela se caminhava. Não me aventuro a tamanha tortura. Fico-me pela preguiça de esplanada e pelos voyerismo inerente à arte de praiar.

Pelo areal vejo os casais, que se esfregam com cremes gordurosos, as adolescentes e jovens catraias que fazem as poses mais sexy para fotografias de smartphone, e claro, não podia deixar de ser, a senhora vestida de branco - tal e qual mãe de santo - que vende a bolinha com e sem creme. Os passos são pesados, os pés afundam-se na areia como alicerces, a voz de fadista canta o pregão e simultaneamente equilibra uma enorme arca no topo da cabeça. É uma personagem encantadora. Com creme e sem creme. Com e sem vendas, ali anda ela. Para lá e depois para cá; faz uma pausa, elogia as suas próprias bolas enquanto a serve a mais um cliente guloso. A areia de açúcar nos lábios é uma memória de criança para todos nós. Um beijo depois da bola, o momento alto do verão!

Conheci a Dona Cesaltina numa das praias da costa Vicentina. Vendia bolas há cerca de 20 anos. É um trabalho sazonal, confessa. Tinha um filho e uma filhas e todos eles vendiam bolas. A filha então! Upa upa, era autentica profissional das bolas. Segurava duas com uma mão enquanto uma terceira era entregue a um cliente faminto. O rapaz por sua vez, tratava as com mais respeito. Nunca segurava mais que uma e sempre com a maior delicadeza, por forma a não perder nenhum do precioso açucar.

Cesaltina, mestre da bola, manejava-as com destreza. Uma perfeição que só se adquire depois de muita bola pelas unhas! Era encantador observar o ritual...

No final do dia, quando as praias se tornavam desertas - tal como a enorme arca - dava por terminada a sua labuta. O pequeno chapéu branco tinha agora manchas de suor e a sua face, cansada mas satisfeita, vertia pequenas gotas semelhantes a orvalho. Bem haja, dona Cesaltina, a bem suada!

Lisboa, 27 de julho 2017
um Velho Pervertido