Bicho feio (tributo a Kafka)
- Perante as provas apresentadas, não tenho outra solução senão condená-lo ao cárcere... eterno - e as 3 pancadas soaram na sala onde o suspiro do condenado não foi sentido. Foi assim que começou.
No mesmo dia, após abandonar todos os meus pertences, despido de cabeça aos pés, alma nua e sem esperança, fui atirado para a cela. Não se imagine um buraco medieval onde o frio a humidade matam lentamente... Era um quarto como tantos outros quartos governamentais. A cama arranjada e limpa, uma escrivaninha para eventuais leituras e rabiscos, e ainda uma pequena janela para contemplar o sol. A verdade é esta, eu era culpado e agora a Justiça fazia-se ouvir. Não tinha como escapar. A ausência de alma desta cela despertou em mim um desejo de criação. Em verdade digo que, durante os primeiros meses o suicídio assombrou-me. Abutres nos pés da cama vigiavam-me meticulosamente. Vermes, nos orifícios da parede, gosmavam em desejo da minha carne. Conseguia sentir nos ossos essa Fome. É muito semelhante a uma paixão, embora com um desfecho mais macabro. Dentro da cabeça travam-se as batalhas mais mortíferas e cruéis que a Humanidade já testemunhou. Em dias de céu cinzento senti-me perto dessa loucura e quase destruí a Vida. Desisti mais vezes do que as que tentei. Não será hoje - pensei quando a luz do sol iluminou o chão do quarto - irei criar a mulher mais bela e perfeita! Sentei-me à escrivaninha, quando, subitamente, num esvoaçar inquieto, um insecto de asas lilases poisa mesmo entre as minhas mãos, até então sobre a mesa. Os milhentos olhos incessantes fitaram-me com um vidrar vigilante. Num pequeno movimento saltitante este bicho feio exibiu-se no raio de sol que esventrava a cela. Rodopiou como uma pequena bailarina de coração acelerado e com as suas pequena asas, iniciou uma dança provocante. Este bicho feio foi assumindo uma silhueta feminina, as curvas como que envoltas num cabedal negro brilhante, acentuaram-se - insectívoro foi o Desejo provocado em mim. Em poucos minutos esta mulher insecto consumia-me com os seus milhentos olhos negros. Conseguia ver o meu reflexo naquele olhar. E eu pasmo, parvo e quedo na cadeira de madeira. Em meu redor esvoaçava, dançava, e as asas cobriam-me como um véu. As suas esguias pernas envolviam-me numa teia. Senti-me congelar com aquele ritual de viuva negra. Passando os seus longos e ásperos dedos pela minha face aproximou a língua bífida. Lambeu-me a cara, contornando a orelha direita. A saliva pegajosa e translúcida escorreu numa lágrima de cera. O cheiro acre da excitação encheu a cela, esse nevoeiro pestilento e simultaneamente excitante lentamente foi-se condensando sob a forma de suco, que escorreu pela sua vulva. Num gemido de insecto, saltou subitamente colocando-a mesmo em frente à minha boca. Quase que a lambi e imaginei a minha língua naquela cavidade de bicho. O pegajoso muco escorria e brilhava. Subitamente, a sua mão de longos dedos escamosos procura o meu pau. A subtileza do fantástico havia surgido na minha vida sem qualquer tipo de aviso. Sem qualquer motivo aparente... No exacto momento em que a sua língua se aproxima dos meus lábios, serpenteando sensual e mucosamente, umas chaves rolam na fechadura da cela. O imprevisto fez com que este bicho feio se dissipasse num nevoeiro branco. Choveu sobre mim...
- Pode sair, está livre... - disse o guarda que de nada se apercebeu.