Amigaram-se

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Quando era criança, recordo ouvir os meus avós comentarem que determinada mulher, era agora amiga de determinado homem. "Amigaram-se", diziam. Essa expressão ficou-me na memória e uma enorme curiosidade em perceber a fundo o que realmente significa. Pelas minhas investigações um homem pode ser casado e amigar-se com a vizinha ou até com a cunhada. Uma mulher, cujo esposo se encontra ausente, seja em trabalho ou qualquer outro motivo de força maior, poderá eventualmente, amigar-se com o senhor da mercearia ou mesmo com o homem do talho.

Um dia, na quinta dos meus tios em Valverde, perto de Évora, aprendi inúmeras coisas sobre a vida e sobre a natureza. Eu ainda era criança, tinha cerca de seis anos. Todos os fins de semana, eu e os meus pais, íamos até essa quinta. Visitávamos os familiares e o meu pai entretinha-se com as hortas. Foi nessa quinta que me ensinou a utilizar uma enxada, a fazer enxertos em videiras, e outras técnicas que nunca mais utilizei. Num sábado de primavera fui picado por uma abelha, mesmo perto do olho direito e berrei como um bezerro. A minha tia avó, sabedora da cultura popular, das rezas, crenças e mezinhas, disse-me para mijar na terra. Assim o fiz. Então, pegou num pouco dessa lama de mijo e como se de uma pomada se tratasse, colocou na zona onde o ferrão da abelha havia deixado as mazelas. Pouco tempo depois a dor foi apaziguando, senti-me melhor e não tive nojo.

Esta quinta em Valverde é algo mítico da minha infância; foi onde pela primeira vez, vi uma ovelha ser coberta pelo seu macho; o nascimento da cria; o galo que cobria as galinhas; os ovos que eram por nós consumidos sob a forma de gemadas; abelhas, vespas e zangões; sapos, rãs e salamandras; o balde acorrentado, para retirar água do poço, a água mais fresca que se possa imaginar. Toda uma aguarela de experiência que com alguma saudade guardo comigo.

No final de tarde, fora da quinta, os eucaliptos agitam-se com o vento. Hoje em dia apenas uma estrada de alcatrão une a quinta a Guadalupe. Caminhando pelos emaranhado de árvores, encontrávamo-nos por vezes, com coelhos e uma ocasional raposa. O meu pai explicava-me a diferença entre as árvores, entre os frutos:

- Chega aqui - dizia-me - isto são framboesas, prova. Sentes como são diferentes das amoras? As framboesas crescem aqui, cuidado não te piques. Lembras-te quando fomos buscar folhas para os bichos da seda? Nessas árvores crescem as amoras.

Pareciam muito infantis as explicações que me dava, mas o sabor das frutas era tão puro que nada mais necessitava ser dito. Nas caminhadas da quinta até à aldeia cruzávamo-nos com os vizinhos:

- Tarde Artur.

- Tarde dona Augustina.

- Tarde Clotilde - era a cadela que pertencia ao guarda que vivia duas casas após a quinta.

No último dia do ano de mil novecentos e oitenta e nove, fomos até à quinta e, junto da família que aos poucos se ia perdendo (o tio Manel havia falecido uns meses antes), festejámos a chegada dos anos noventa. Nessa tarde, quando as mulheres na cozinha preparavam algumas iguarias e os homens se dedicavam a tratar da garrafeira e de algumas tarefas culinárias mais exigentes em termos físicos, resolvi passear pela floretas de eucaliptos e pinheiros.

A terra estava húmida, a cor castanha, barrenta, era predominante e o ar era fresco e limpo. Ao fim de alguns metros oiço barulhos agitados, respirações descontroladas, por momentos, tive algum receio e ponderei voltar para trás mas não o fiz. Curioso e corajoso resolvi aproximar-me da zona onde me pareciam ser gerados esses ruídos. Junto a uma rocha, escoltada por duas árvores, vejo dois corpos enlaçados. Um homem, de corpo gordo e peludo, com as calças pelos artelhos e uma camisa vermelha e preta aos quadrados, desabotoada. A mulher, essa apenas consegui ver os joelhos e os pés. Deitada sobre a rocha, gemia, arfava, não dizia nenhuma palavra. O homem, num movimento ritmado e por vezes fora de tempo, mexia as ancas e contraía as nádegas. Pareceu-me estranho, não percebi o que se passava, por algum motivo senti ansiedade.

O homem movimentava-se, tentando encontrar a melhor posição, pisando pequenos galhos e folhas cujo o som se misturava com o arfar e gemidos da mulher. Não os consegui reconhecer e decidi voltar para trás, pois sentia-me desconcertado.

Quando volto à quinta, na cozinha, as mulheres conversavam junto ao fogo de chão, e comentavam:

- Sabes, o Jerónimo da drogaria, agora amigou-se com a Ermelinda da peixaria.

Lisboa, 27 de dezembro 2015
um Velho Pervertido