São traças
Tinha passado a noite numa daquelas associações centenárias, a beber bagaços e a conversar sobre tretas, com os velhotes do bairro. O senhor Manel contou-nos a sua história de quando arranjou uma puta de dezanove anos, tendo ele setenta e oito, que lhe fez trinta por uma linha. Eu sabia que eram tudo aldrabices mas a ideia de tal possibilidade era hilariante e o bagaço não parava de surgir na mesa. Foi uma noite perfeita para um dia de ressaca.
Subi até ao quarto andar, a luz não funcionava nas escadas e o elevador estava avariado. O prédio era velho e cheirava a cão doente. Senti-me enjoado, não havia comido, apenas tinha vomitado antes de sair de casa.
- João Peixe? - Perguntou-me um velhote no terceiro andar quando por ele passei?
- Oh, senhor Zé, como está? - respondi.
- Oh, miúdo que fazes por aqui? Tás grande rapaz! - disse o velhote enquanto se assoava.
- Sabe se a Luísa está por casa?
- Não sei não. Sabes, quando envelhecemos o que acontece à nossa volta deixa de ter a intensidade que tinha. Quando envelhecemos nem as traças nos pegam rapaz - disse o Sr. Zé em tom de desabafo.
Não quis pegar na conversa e larguei essa teia de ideias que ele havia jogado para cima de mim.
- Vou ver se está por casa então. Té logo sô Zé.
- Adeus miúdo. Cuidado com as traças.
Luísa estava sozinha em casa, ainda de pijama e despenteada como um cão de água. Entrei, dei-lhe dois beijos e estiracei-me no sofá. Que descanso. Eu não amo esta miúda, mas gosto dela à brava, é boa, fode bem, não me dá chatices e eu não lhe causo dramas. A pior fase da nossa relação foi quando ela resolveu apaixonar-se por um gajo que conheceu num workshop de escrita criativa. Já não podia ouvir falar do tipo. E ele escrevia poemas e citava escritores clássicos, e contemporâneos, e tinha amigos em editoras. Era uma seca pegada... Felizmente o tipo não a fodia decentemente e a Luísa acabava por vir ter comigo. Não que eu seja um supra sumo da barbata quando se trata de sexo, mas sinto e acredito em tudo o que faço. Gosto como ela é despreocupada com o Amor, ambos sabemos que não nos amamos, mas gostamos um do outro, por vezes isso basta. Há quem não admita e então, aquela doença entra pelo peito e pelo coração e a cada bombada de sangue, o desespero, o medo, a incerteza do futuro, destroem o que poderia ser uma relação perfeitamente saudável, desprovida de amor, carregada de prazer e sinceridade. Os apaixonados mentem, os desapaixonados não.
Luísa sentada aos meus pés pergunta:
- Desgraçaste-te todo ontem não? Tens uma cara...
- Passei a noite a beber bagaço e a ouvir histórias do Sr. Manel. Putanhices...
- Queres um chá? Estava a ferver água
- Pode ser.
No sofá bebemos, em silêncio. Abraço-a e ela encosta-se no meu ombro, como que pedindo conforto e mimo.
- E tu que fizeste ontem? - perguntei após a beijar na cabeça.
- Sai com o Vítor, e acabamos a noite no Intendente, naquela casa antiga.
- Andas metida com o Vítor agora?
- Não. Não sejas parvo. Bebemos e conversámos merdas, entretanto havia um concerto e ficámos por lá. Conheci o teclista da banda. Só cheguei a casa às sete da manhã.
Afastei-me dela. Apesar de não termos uma relação amorosa, sempre que me conta estas histórias sinto repúdio. Eu sei que é egoísta da minha parte, mas não consigo evitar. Eu tenho esta coisa em mim, a possessão do que tenho, do que não tenho e quero ter, do que não quero ter mas que não quero que ninguém tenha, a Luísa enquadra-se nesta última categoria.
- Não sejas estúpido. Não foi nada. - diz quando me abraça - Foi deprimente.
Bebo chá, olho para ela:
- Então?
- Fomos para a casa dele. O apartamento ali em Santos, muito pequeno e estava sujo. A casa cheirava a mofo e havia roupa espalhada pelo sofá. De qualquer forma, estava já trocada das ideias, enrolámo-nos no quarto dele, despiu-me e eu despi-o a ele. Quando lhe tirei os boxers reparei que tinham uns furos pequeninos e disse-lhe:
- Tens os boxers furados.
- Eu sei, foram as traças - responde o teclista.