Deusas e Deuses (machos e fêmeas)

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Num acaso dos Deuses esbarrámos um no outro e na semana seguinte dormimos juntos. As vozes modificam-se quando fazemos amor, o respirar torna-se sincronizado e os lábios tocam-se na mesma frequência que a penetração. O pulsar dos sexos é a forma que os corpos têm para expressar desejo e a alma, mergulhada em delírio, apaixona-se e perde um pouco de si, passando então a fazer parte do outro. A fusão de almas é o mistério que ninguém nos revela e que pode ser penoso se gerido de forma indevida.

Poucos meses depois partilhávamos cama, mesa e ocasionalmente escova de dentes. Juntos nos momentos mais íntimos, mesmo quando se tratava apenas de mijar, fomos construindo a nossa identidade e as nossas rotinas. A minha vida foi-se tornando colorida onde antes imperava o preto e o branco. Quando o meu mundo foi sendo colorido pela sua presença percebi que o meu passado cinzento, o mesmo onde eu pensei que havia tido pequenos arco íris, não passaram de meros piscares de olhos do futuro dizendo-me que estava a ser daltónico, que a verdadeira cor ainda estava para surgir.

A naturalidade com que tudo aconteceu parecia saída de um filme, daqueles alternativos, franceses ou italianos, onde o amor vai sendo uma mistura de excitação e acontecimentos peculiares. Quando pelas ruas da Baixa, de mão dada, passeávamos e olhávamos os transeuntes, ouvíamos orquestras a tocar no mesmo ritmo que os nossos passos e, as pessoas, esses meros mortais, admiravam-nos como Deuses. Este efeito acontece quando as pessoas, em perfeita sintonia, provocam um sentimento desconfortável nos outros que, embebidos em padrões, preconceitos e normas, temem a diferença ou a perfeição entre estranhos seres que coabitam consigo.

A nossa união fazia com que pássaros criassem os seus ninhos na árvore que está mesmo perto da janela da cozinha, que os gatos dessem à luz no jardim perto da nossa casa, que o mar, por vezes nervoso, acalmasse e as ondas violentamente devastadoras se tornassem suaves balanços de água límpida.

Quando fodemos numa travessa escura, por baixo de uns andaimes de uma obra inacabada, as cuecas no chão e a minha semente espalhada pela calçada fizeram com que meses depois, flores crescessem nesse local. Que ideia romântica dirão, mas apenas vos conto o que vejo, poucas vezes vos conto o que sinto.

Quando vos trago estes devaneios numa esperança de moldar o tempo como se fosse barro, trata-se de um escape, um pequeno mundo onde gosto de me isolar pois é mais confortável assim. Os dias não são aventuras e as horas são apenas células que envelhecem e caso não percebamos este conceito de vida que escorre em cascatas de lava que eventualmente solidifica e estagna, corremos o risco de não sentir o calor. Quando é tarde, apenas a rocha, aquela onde nos deitamos quando o calor termina, é áspera e é como uma lixa que maltrata a alma ensanguentada, esquecemos que fomos suaves e quentes, quentes no coração.

Um dia fez trovoada, eu tive medo, ela tremeu nos meus braços e senti-me fraco para a proteger. Na semana seguinte, quando olhou nos meus olhos e me disse que eu não estava ali, que o chão era esponja e não se sentia segura, começamos a vacilar em cada passo de dança, fomos ficando distantes procurando um equilíbrio individual, sem perceber que juntos, num só eixo, poderíamos caminhar facilmente neste ambiente incerto e instável. Horas depois ela abandonou o nosso ninho, deixando-me novamente num quadro cinzento de naturezas mortas.

Sofri um acidente que me deixou amnésico, não me permitindo criar novas memórias nem esquecer este nosso passado. Para vos dizer a verdade, esta história que vos trago não consigo afirmar que se tenha passado ontem ou na semana passada ou mesmo há dez anos atrás. Para mim foi há cerca de umas horas e a angústia, o luto, ainda me faz penar, dia após dia. Por vezes questiono os Deuses e as Deusas porque permitem que nós, machos e fêmeas soframos desta forma por essa coisa inventada por eles, o amor.

Lisboa, 13 de janeiro 2016
um Velho Pervertido