Valor Acrescentado

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Sempre fui uma mulher de poucas palavras. Lembro-me que comecei a falar bastante tarde e os meus pais, preocupados com maus-olhados e outras doenças da época, levaram-me a um médico, por forma a curar-me da ausência de palavras. As ideias, essas não faltavam. Corriam pela minha cabeça como bandos de pássaros. Por vezes, contradiziam-se. As dúvidas surgiam. As questões aumentavam, no entanto as palavras, essas que pouco dizem quando ditas em alta voz, eram inexistentes, e para mim eram igualmente desnecessárias.

Durante a adolescência, sempre fui vista como a miúda estranha. Aquela que nunca fala e vive enterrada nos livros que carregava numa sacola a tiracolo. Quando conheci o rapaz com quem fodi pela primeira vez o meu mundo sofreu uma mudança drástica. Senti que havia rasgado uma placenta que me envolvia e da qual não tinha consciência. O mundo passou a ter um sabor diferente e os homens, esses, eu olhava-os como uma predadora. Mesmo quando não tinha fome, mantinha-os sob minha vigilância, estudando as rotinas, os tiques e os vícios. Seriam fáceis de caçar assim que surgisse a necessidade. Tive amores, desamores, paixões e fodas ocasionais que, apesar de excitantes e deliciosas, nunca me fizeram verter palavras. Gemi, gritei e vim-me... Os homens, assustados com o silêncio da minha voz, rapidamente perdiam a confiança de macho e tornavam-se cordeiros e cachorros mansos. Era nesse momento que eu perdia o interesse.

Numa tarde de abril, curiosamente o segundo dia após eu ter completado trinta anos, bebia chá e lia Anais Nin. Troquei olhares com um homem que na mesa mesmo em frente à minha bebia - com sorvos de passarinho - um café. Olhou-me de soslaio e esboçou um ténue sorriso pelo canto da boca.

- Senta-te comigo – disse-lhe com uma voz suave e carinhosa mas num tom de quem pode e quer.

Ele nada disse, levantou-se e sentou-se a meu lado. Olhámo-nos nos olhos e ele sorriu novamente. Tinha feições carregadas e o cabelo grisalho. Não era propriamente o homem bonito que a publicidade nos impinge. Era mais um cowboy, um homem com uma face vivida. Transpirava um charme equivalente ao do aroma de móveis antigos em barbearias. Apesar da escassez verbal de que padeço, as poucas palavras com que agracio quem comigo partilha um momento, uma experiência ou uma cama, têm um poder avassalador. Os homens sucumbem às minhas ordens. Acredito que se pedisse a um deles algo como:

- Faz com que chova. Ele subiria aos céus, atiçaria as nuvens e em caso de insucesso, sentar-se-ia no local mais alto do mundo e choraria lágrimas de desespero que cairiam sobre a terra como gotas de chuva salgada.

Não falámos, apenas tomamos café e quando ele se levantou, gentilmente passou a mão pela minha perna e foi…


Nessa tarde trabalhei das quinze e trinta até à meia noite. Parece quase anedótico mas a verdade é que o meu trabalho sustenta-se no uso da palavra. Sento-me em frente a um telefone e atendo chamadas, maioritariamente de homens. Oiço o que têm para me dizer, respondo o mais eficiente possível e recebo a chamada seguinte. As palavras que utilizo são ocas mas bonitas, saborosas mas no entanto não lhes sinto o travo. O telefone tocou:

- Estou sim - disse suavemente.

- Olá boneca, estava à tua procura - respondeu-me uma voz forte e grave.

- E eu estava à tua espera amor.

As palavras naufragam pelos mares da provocação. Diluem-se no erotismo das imagens que elas mesmas criam nas mentes de quem as ouve... de quem as gera... de quem as pensa. Mas a mim não comovem. São apenas as armas que sabiamente utilizo como autênticos bisturis. Os minutos são caros e eu faço-os valer. Os homens hipnotizados pelas silabas e vocábulos tornam-se maleáveis e previsíveis como correntes de água em riachos. Por fim... o clímax é atingido e o sonho desaparece tal como nevoeiro matinal.

A chamada caí e não volta a telefonar. É assim que os imagino... Homens que no silêncio da realidade procuram as minhas palavras numa fantasia de valor acrescentado.

Lisboa, 22 de abril 2016
um Velho Pervertido