Sempre tua
Decidi comprar o bilhete mais barato para fora da Europa e deixar-me ir para algures em África. Algures onde o sol é quente demais para as lágrimas escorrerem nas faces. A meu lado um sujeito alto, negro e trajando um fato típico de empresário do mundo financeiro, lia um dos jornais facultados pela hospedeira de bordo. Claro! Mundos de negócios e esses aborrecimentos do Capital. Senti gotas de suor gerarem-se no meio dos seios e escorrerem-me pelo peito. Senti um calafrio de alma penada. Começando na nuca e descendo pelas costas, para de seguida, subir pela coluna e explodir dentro da cabeça, semelhante a um orgasmo sem prazer. As horas que passam e a clausura voluntária são a companhia ideal para ordenar os flocos de vida que caem como memórias. Crio um manto de vivências onde algumas flores, corajosas e fortes, tentam penetrar e exibir a sua cor e fazer sentir o seu perfume. Pobres de nós que, cegos e anósmicos, ignoramos as maravilhas que a vida nos oferece. Por entre essas memórias vejo que, timidamente, uma pequena flor luta por rasgar um caminho até ao Agora. E eis o que brota por entre a realidade:
Passei a noite anterior com o meu amante. No secretismo de um motel em Sintra, encarnamos personagens que dificilmente poderão ver a luz da realidade. Naquele quarto, os cheiros e os sons são o nosso segredo. As relações que lá fora se desenvolvem, ao sabor do conformismo e dos bons costumes, são esquecidas, e, sob um lençol de paixão e desejo, alimentamo-nos de fantasia, bebendo dos lábios um do outro o suco vital da paixão. É este o palavreado poético com que tento pintar a traição. Utilizo cores que não ferem a confiança nem o compromisso eterno. Suaves traços de mentiras, falsos sorrisos sempre que penso nele, são o pequeno-almoço. O meu marido, bom homem e que certamente tem a sua amante, beija-me no pescoço e sai para cumprir com as rotinas do empregado por conta de outrem. O batom que encontro na camisa branca que veste todas as quintas, o cansaço do qual padece na cama, são pistas mais que suficientes para confirmar que nos enganamos mutuamente. Eu não me importo porque penso no outro e no seu corpo jovem e sedento de mim. Por coincidência ou fruto de maldição, o seu cheiro fica-me impregnado nos pequenos pelos do nariz durante dias e dias. O meu marido nem desconfia pois eu beijo-o com a mesma intensidade de sempre. Neste jogo de máscaras e faz-de-conta, os dias vão fluindo e a felicidade mantém-se numa constante. Isso faz-nos acreditar que ela não existe. É como a viagem neste avião: estável, sem solavancos e por vezes, quando menos se espera, uma turbulência faz-nos tremer; o coração palpita assustado, o arrepio frio percorre o corpo mas, tal como surgiu, desaparece, dissipando-se na estabilidade desinteressante.
Quando saio do avião, o sol queima-me os ombros descobertos. Prendo o cabelo e olho em volta. A terra barrenta e as ocasionais árvores moribundas completam a paisagem. O meu marido ficou preso na rotina e na dúvida do que poderá ter acontecido. Imagino que contacte a polícia, mova montanhas e me procure vasculhando por entre nuvens e ondas do mar. Eventualmente, encontrará o manuscrito de despedida que coloquei bem no fundo da gaveta onde esconde fotografias da amante. A minha carta sincera e marcada com um beijo de batom vermelho:
Meu amor,
A volatilidade das paixões e a inquietação que nos assombra fizeram com que, num ato de rebeldia, procurasse novos amores pelo mundo que nos rodeia e que desprezamos. Acredito que continuarás a amar-me, tal como eu te amo… No entanto, ambos sabemos que a insatisfação é a maldição que nos tem azarado nos últimos tempos. As camas sem desejo, o sexo sem sabor e sem vontade e o amor frio e sem olhar, são apenas alguns dos sintomas que ambos não queríamos admitir.
Sei que tens uma amante, e tu também sabes que tenho o Outro. Ambos vivemos cegos nesta mentira, como quem passa o dedo no creme do bolo, na esperança de que a marca não seja notada.
Sempre tua,
A esposa