O desejo do condenado

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Em Portugal não existe pena de morte, mas por vezes imagino como seria essa realidade. Abrir o jornal e um cabeçalho enorme nas páginas centrais: “O desejo do condenado”. Seria um artigo sobre o seu último desejo, antes da pena capital ser aplicada.

Auxiliar numa instituição pública de apoio a crianças sem família condenado à morte por violação de menor.

Que história horrível, todos nós condenaríamos esse monstro:

- Espero que sofra - diriam os populares, os que compram os jornais mais mediáticos e brutais.

Aposto que o condenado chamar-se-ia Carlos, teria uma família composta por uma esposa (muito linda) e dois filhos meninos de quatro e seis anos. O que levaria um homem com uma vida tão perfeita a cometer tal crime, arriscando-se a uma condenação sem retorno? A estrada sem saída, e pior que isso, proibida a inversão de marcha. Quando penso nisso, tento imaginar o que sente quem comete esta perversão. Será o poder sobre outro ser humano? Para isso poderia simplesmente violar uma pobre mulher (ou homem) indefesa. Poderia subjugar essa pobre criatura e usá-la para seu belo prazer.

Carlos, vigiava os quartos onde as crianças dormiam, após um dia intenso de aulas. Gostava particularmente da camarata dos meninos, com idades compreendidas entre quatro e os sete anos. Havia um miúdo, loiro, mais pequeno que os outros da sua idade, muito reservado e de olhar ausente, que Carlos adorava. O seu cabelo despenteado pendia pela testa, os lábios eram finos e delicados. Por vezes tinha direito a duas sobremesas, por não ter cometido nenhum erro de ortografia no ditado. Era o capitão da equipa de futebol no intervalo das onze, pois havia marcado mais golos que os outros meninos no intervalo anterior. Coisas boas aconteciam a este menino, no entanto, aquele sorriso não rasgava a sua carrinha doce.

Um dia, quando todos os meninos estavam na sala de desenho, Carlos, que de fora os observava, reparou nas suas mãos pequeninas segurando um lápis verde, enquanto pintava a copa de uma árvore, um pinheiro, daqueles que desenhamos na altura do Natal, triangular e bastante alto. Quando o menino se levanta para afiar o lápis, Carlos repara como as suas perninhas delicadas, no macacão de ganga, movimentam-se como se estivesse em fuga, e o seu coração explode de ansiedade. Dentro dele um desejo inexplicável de possessão. Penso que o melhor com que se pode comparar, é o modo como os gatos brincam com pequenas presas sem as matar, apenas num despique de forças pelo prazer de assistir à resistência inglória da presa, que no seu íntimo, sabe que a batalha está perdida. Nesse dia, Carlos voltou para casa e não conseguia esquecer o menino. Fez amor com a sua mulher e pensou no menino; aconchegou os filhos na caminha e pensou no menino. Na semana seguinte estaria a trabalhar de noite. Pediu aos deuses para não cometer nenhuma loucura. Que poderia ele fazer? Como evitar o que estava já decidido nos Destinos? Que peso tremendo este… A inevitável espera pelo Inevitável.

Era o mês de novembro de dois mil e dez, Carlos não encontrava paz. Dentro de si os demónios discutiam, tal como políticos no Parlamento. O destino por vezes é tão perfeito, que na segunda noite em que estava de turno, o menino levantou-se da sua caminha e dirigiu-se à casa de banho. Carlos, que vigiava os corredores, perguntou:

- Onde vais? Devias estar a dormir.

- Quero fazer chichi - respondeu o menino com ar ensonado e esfregando os olhos.

O pijama estava-lhe grande, era igual ao do filho mais novo de Carlos. Observou: é tão engraçado ver crianças andar ainda sem a coordenação motora perfeitamente desenvolvida. Achava aquela imagem tão apetitosa que o seu coração acelerou de ansiedade (e medo). A mesma que o perseguia desde aquele dia fatídico em que reparou nas mãozinhas, perninhas, e sorriso ténue do miúdo loiro.

Quando este voltou da casa de banho, percorreu o corredor até à camarata e Carlos, sentado num banco, num canto escuro, perto da porta da dispensa onde estão guardados os materiais para limpeza das salas e corredores, esperava, tal como um gato aguarda o momento perfeito para apanhar uma Melga. Quando o menino passou e não viu Carlos, pois o sono era muito e os olhos tendiam a permanecer semicerrados, foi apanhado de surpresa e estava agora num local escuro e não conseguia gritar. Uma mão grande e máscula cobria-lhe a boca, uma voz, que ele não conseguiu identificar se era familiar ou não, apenas sussurrou no seu ouvido: - Ssshhhh, não grites, está tudo bem.

A dispensa, onde tudo aconteceu, foi selada pela polícia. Carlos foi identificado pelo sémen (de semente) derramado, e pelas marcas de dentes no braço direito. Carlos admitiu tudo em tribunal e chorou.

Nesse dia os jornais venderam que nem ginjas no Rossio. O seu último desejo foi ver os filhos.

Lisboa, 14 de dezembro 2015
um Velho Pervertido