Revolução

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Na noite em que a revolução estava marcada a minha ânsia de liberdade era diminuta. Por vezes o sentimento de clausura é desejado, tal como uma ave, que se cobre com as asas e adormece num casulo de penas. Indiferente ao que sinto saiu de casa.

Encandeado pelo brilho da lua cheia demorei alguns segundos a adaptar-me à escuridão. O som de tambores, bem lá ao fundo para além do horizonte que o meu olhar permite, fazem estremecer o ar pesado e quente que respiro. São ecos da revolução prestes a acontecer. Sinto o cheiro de carne chamuscada e oiço as palavras de ordem que ao longe, assemelham-se a uma reza antiga. A lingerie vermelha que ela vestia veio-me à memória. E o fogo. Essa chama que nos consumiu lentamente como um incenso ainda me aquece a pele.

- Ao menos diz-me como te chamas.

- Para que interessa isso? - respondeu sem olhar para mim e saiu porta fora.

Não foi a primeira vez, e certamente não será a última que estas mulheres me invadem a alma, e sem qualquer receio de a danificar a jogam fora num bater de porta. Eu permito que isso aconteça, aliás, desejo que assim o seja: o masoquista emocional.

Enquanto fodiamos, o suor escorria pelos corpos. Senti a frieza e distanciamento que a situação exigia. Corpos estranhos que se fundem sem qualquer contacto entre as almas - autêntica repartição de finanças dos anos oitenta.

Apenas sabíamos que poderia ser a última noite com vida. Ambos havíamos recebido o memorando pelo correio, alertando para a eventual perda de camaradas durante o processo revolucionário. A vida estava prestes a resumir-se a fome e latas de conservas fora de prazo. Nestas situações limite perdemos os filtros que nos protegem. Não só de raios ultra violeta gerados pelos olhares de outros, mas também, os que nos mantêm afastados de arrependimentos. Despidos, expomos o corpo e a alma aos olhares e aos juízos mortíferos que constantemente nos tentam incendiar e derrubar.

- Vamos para um qualquer lugar, preciso de ser fodida - disse-me ela com voz trémula , expressando ansiedade adocicada com promiscuidade.

O marchar da guerrilha sincopado com o nosso ritmo cardíaco provocou um aumento da adrenalina. Quero muito esta fêmea na minha cama, foi o que pensei. O calor gerado na sua vulva, bafejou desejo na minha mão nua. Num acidente propositado toquei-a. Não houve tempo para Depois do Adeus ou Grândola Vila Morena. Ainda o primeiro tiro não tinha soado e já a penetrava como um soldado marchando pela avenida em direção à Liberdade. O sabor dos lábios húmidos inundou a minha boca. Não há resistência nem pelos que impeçam a penetração da língua na sua intimidade de mulher.

E marchámos, e trepamos obstáculos, e explosões - orgásmicas - fizeram-se ouvir nos corredores do prédio. No final, os destroços para ali estavam. As roupas, as gotas de suor no soalho de madeira. As manchas brancas e já secas nos lençóis negros. Também ao longe se ouviam gritos de vitória. Liberdade ecoava e as paredes ressoavam. Este não era fim, antes pelo contrário; iniciar-se-ia o PREC com as suas cooperativas, parcerias e associações. Em breve poderíamos perder todo o pudor numa Orgia pós ditadura.

Lisboa, 27 de dezembro 2016
um Velho Pervertido