Funerária

#

A vida vai passando a cada final de semana na rua de Sant’ana; perto da Ginjinha, há quem venda feijões, sapatos em segunda mão (segundo pé), lâminas de barbear e outros bens que tais.

Num restaurante tradicional sentei-me, pedi um bitoque com ovo estrelado. Ainda sentia a ressaca da noite anterior. Havia estado com Ela na Mouraria até perto das 4 da manhã. Bebemos cerveja, vinho e o resto nem me lembro. Havia um daqueles artistas que tocam teclado, cantam e fazem o pino. As vidas manifestavam-se. As pessoas sorriam, abraçavam-se e dançavam. Também nós o fizemos. A ultima imperial nem a pagámos. Já se queimavam os últimos cartuchos e a banca das jolas já se preparava para fechar.

- Esta é por conta da casa - disse o rapaz que servia as cervejas a um ritmo alucinante, como se os movimentos fossem uma espécie de coreografia.

As luzes apagaram-se e apenas o murmúrio dos últimos resistentes se fazia ouvir pelas estreitas vielas da Mouraria. De caminho para casa Dela sussurei-lhe ao ouvido.

- Já bebi tanto.. acho que não vai funcionar.

Ambos rimos e não fizemos drama. Assim que nos deitámos na cama enroscámo-nos um no outro e tivemos vontade. O desejo apoderou-se de nós, o álcool corria-nos lentamente pelo sangue, como um bêbado pelo Rossio. Demos uma queca memorável. Adormecemos suados.


No Domingo, depois da ronhice típica dos dias de ressaca, resolvemos caminhar pela cidade. Descemos a rua de Santa’ana e passando pela funerária lá estava ele. Os olhos semi cerrados, a cabeça pendendo sobre o gordo pescoço. O tédio de esperar pela morte é assim. Dá sono.

O agente funerário, letárgico, gordo e com três queixos. A roupa fica-lhe justa. Apertada. Sentado na sua cadeira de metal, desconfortável e fria. Ele trabalha. Aguarda que a morte aconteça. Rodeado de representações de santos, deuses e algumas velas, o ambiente da agência funerária é incomodativo. Aposto que na gaveta, no lado direito da secretária, tem um catalogo de caixões e adereços fúnebres. Alguns packs a preços económicos e até pequenos envelopes onde poderá ser impressa uma fotografia do falecido. Coisa de luxo. Coisa de morte.

Adormecido, não reparou em nós. Não sentiu as almas vivas observando-o como mirones curiosos. Ao longo dos anos deve ter desenvolvido uma sensibilidade extrema a espíritos. Espíritos desprovidos de corpo. Em contrapartida, as pessoas, as vivas e que gritam em festas populares e se embebedam, eram praticamente invisíveis aos seus sensores espirituais.


Num riso mórbido continuamos caminhando até ao Martim Moniz, afinal o jogo de futebol estava prestes. Não gosto de futebol mas é um ótimo pretexto para juntar amigos, conhecidos e agradáveis desconhecidos numa mesa comum.

A equipa pela qual gritávamos e sofríamos perdeu. Já passou. Amanhã trabalhamos e a vida continua, normal, sem esoterismos ou extravagâncias.


Passámos a noite juntos. Acordámos bastante cedo, como já era Verão o sol brilhava. Beijei-a e num abraço ficámos durante instantes. Após tantas horas dormindo parece que estivemos ausentes da vida. O tempo suficiente para nascer uma pequena flor de saudade.

A força das obrigações, as correntes das necessidades obrigam-nos a interromper o ritmo normal da Alma. Sei que muitos dos vós pensarão que falo de preguiça. Não se trata disso; o conforto do corpo e da alma nada têm a ver com preguiça. Não esta escrito na nossa genética que devemos trabalhar e arrecadar dinheiro para continuar a comer e a pagar caprichos do espirito. Esse sacana está mal habituado.

Durante o duche da manhã constatei que o Amor é carnal e poético. A carne está viva, o sangue percorre e alimenta os músculos e a Pele. Eu sinto, vocês não?

Ela entendeu quando lhe disse que sentia uma tusa enorme cada vez que a via nua e a penetrava, duro e com fome. Ela entendeu que cada beijo era com desejo. Cada penetração era um Poema. E ela rima. Ela ri.


Naquela agência funerária da Calçada de Sant’ana há um homem gordo e sonolento que aguarda a morte de alguém. Pois é meu amigo, hoje não será a minha.

Lisboa, 01 de agosto 2018
um Velho Pervertido