Escritor famoso

#

Poemas e prosas. As palavras são-lhe fáceis, como sacar caricas de médias ou como ver as horas no grande relógio da igreja. Aprendeu a ler e a escrever sozinho apenas olhando os livros que o pai lhe lia. As pessoas diziam que era um génio mas ele nunca se sentiu como tal. Na insegurança que um génio tem, sempre duvidou das suas capacidades e por isso, esforçava-se mais que qualquer outra pessoa. No lançamento do seu primeiro livro, um romance extremamente denso e profundo, encheu um estádio de futebol. As pessoas entoavam cânticos. Gritavam o seu nome em histeria. As mulheres, novas e mais maduras, exibiam os seios e choravam. Todos os dias recebia dezenas de cartas de homens e mulheres. Os jornalistas, os que colecionam fotografias de pessoas famosas, escoltavam-no constantemente. Mudava de casa e tudo, mas rapidamente os tinha a baterem-lhe à porta, suplicando por uma entrevista ou uma fotografia exclusiva. Os vizinhos ofereciam-lhe bolos, as vizinhas casadas e solteiras, possuídas pelas palavras que ele havia escrito, entregavam-se a seus pés implorando pelo seu esperma. Um beijo apenas, por favor! Nunca imaginou que seria assim. Como é possível que um pouco da sua alma, esse quase nada, que descreveu nas frases do seu livro fosse um poderoso afrodisíaco.

Até aos seus quarenta e cinco anos nunca se havia apaixonado. Teve paixonetas e ocasionais amantes de circunstância. Noites de necessidade com mulheres bonitas e fogosas. O amor nunca lhe havia batido à porta, nunca havia caído a seus pés alias, ele nunca havia rastejado em merda por amor. Não que fosse um homem frio, longe disso! Era até bastante romântico e toda a sua obra espelhava essa sua faceta apaixonada. É fácil amar em palavras escritas. As pontuações, símbolos cujo significado aceitamos sem questionar, completam a cadência da emoção das palavras. Uma pequena vírgula no primeiro encontro, o ritmo do coração altera e ponto final. Num novo parágrafo, a paixão é evidente e os olhos verdes da linda mulher que beija - ou olhos castanhos, negros ou azuis - são o seu oceano de esperança. É fácil amar em palavras escritas que obedecem a regras. O amor, esse bicho cabeludo - pelo sedosos e agradável ao toque e ao cheiro - é desejado e alimentado com esperança. Quer-se grande e gordo. Saudável e lindo. Oh meus amigos, como é fácil amar em palavras escritas. Melhor ainda, como é bom foder com palavras escritas. Penetrar essas silabas virgens e sentir que a cada palavra, a dor, torna-se um prazer difícil de discernir; é o desejo que se mistura com a dolorosa realidade, fundindo-se novamente com a esperança. Os poetas chamam-lhe sonho.

No passado ano, ao completar cinquenta anos, ganhou um prémio literário internacional. Recebeu uma medalha das mãos do presidente da república portuguesa. Que enorme honra! Durante a cerimónia foi com enorme regozijo que agradeceu a todos os presentes. No mês que findou chegou a ser convidado para lecionar algumas aulas em faculdades de letras. Como é fácil ensinar palavras escritas. Que professor tão prendado e maravilhoso; os alunos hipnotizados pelo seu génio. Os psicólogos traçaram a sua personalidade como se de uma carta astrológica se tratasse. Um sedutor nato, geneticamente talhado para atrair todos os que o leem. Tal como já devem imaginar, seduzir é bastante fácil com palavras escritas.

Passados todos estes anos e todos estes livros, que são autênticas relíquias da nossa cultura literária, ele percebeu o que faltava. Apaixonou-se pelas palavras ditas. Ama o som da voz e dos gemidos da mulher que a ele se entrega. Deseja intensamente a pele dela contra a sua. A textura dos mamilos nos seus lábios. Sentir na carne da língua, os beijos de língua, roubados durante uma peça monótona no teatro Dona Maria.

- Talvez já seja tarde - pensou quando a conheceu na esplanada da Brasileira.

Ela não percebeu o que ele quis dizer com o ser tarde. Ela pouco ou nada sabia de palavras escritas. As frases que se dizem são-lhe igualmente estranhas, pois ela dedicou a sua vida e alma à pintura. Ai como é fácil amar nas cores de uma tela e nos traços a carvão desleixadamente traçados em folha de papel branco. É tão fácil amar na Arte.

Lisboa, 15 de junho 2016
um Velho Pervertido