Período da mudança

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Desde que cheguei, no início da semana, o sol não brilha. O constante lençol branco que cobre a cidade é também frio como as mãos de Karolina.

O ar é poluído. As pessoas, fotocópias de um estereótipo politicamente correto, agasalham-se do frio instintivamente. As mulheres são deusas danificadas pelo ambiente e pela vida na cidade. Não deixam de ser lindas, algumas até, conscientemente, chegam a ser Encantadoras. Estes seres (quase mitológicos) causam em mim um desejo por novas experiências. Os olhares cruzam-se, e numa curiosidade atrevida os sorrisos encontram-se. Imagino o sabor dos seus lábios. Lábios que não falam a mesma língua - línguas serpenteando entre dentes – e por assim o serem, tornam-se mais apetitosas.

Após acordar resolvi petiscar no Bunkier szutki. Os locais reúnem-se neste café para conversar, beber chá, vodka e fumar cigarros. Assim que entro, duas ou três miúdas fixam o olhar nos meus movimentos. Avaliam-me, comentam entre si, e deixam-me ir... Aproveito para escrever uns parágrafos num caderno que arrasto comigo tal como uma cruz. Este frio que gela a motivação, e a penumbra que inativa a perversão, atordoam-me o suficiente para procurar dentro de mim uma motivação falsificada, digna de condenado à morte, que me obrigue a vaguear pela cidade na busca de uma história.

Numa das travessas perto da praça do mercado encontro um outro salão de chá, ponto de encontro de artistas marginais e renegados. Entro e peço um café bem cheio. Enquanto espero pela chávena passo uma vista de olhos pela vitrine onde bolos caseiros são dispostos:

- Devias experimentar o cheesecake - diz-me uma voz feminina num inglês sensual e delicado.

- É uma miúda com um ar bastante imberbe. Alta e extremamente magra, tal como uma pequena princesa retirada de uma história de Tim Burton.

- Vou seguir o teu conselho. Tomas um café ou um chá e partilhamos o bolo?

- Sim. - respondeu-me sorrindo.

- Como te chamas? - pergunto enquanto nos sentamos numas velhas cadeiras de madeira, junto a uma mesa coberta por um napperon de renda branca.

- Karolina.

- Karolina...

- Sim.

-És de Cracóvia?

-Não... mas vivo aqui já faz algum tempo. E tu de onde és?

- Portugal, Lisboa. Já lá foste?

- Sim. Gostei muito.

- Porque não te conheci nessa altura?

Sorri e fica ligeiramente corada. Os seus traços juvenis e delicados são de uma sinceridade rara. Apesar dos seus vinte e oito anos, Karolina parece ser uma menina de dezoito ou vinte. Conversamos durante horas e tenho a sensação de que não a quero deixar ir. Quero-a para mim, tal como uma criança quer um brinquedo, ou como um coração destruído procura quem o reconstrua. A cura, no entanto, essa é lenta e deve ser feita no seio da solidão e auto conhecimento.

- Isto será estranho de dizer... mas… acho que te quero.

- Estou a ver... - responde-me com um ar de quem questiona o que é o tempo, e sorri envergonhadamente.

- Mas primeiro mostra-me a cidade. Surpreende-me, conta-me histórias!

Apesar do frio e da chuva visitamos o castelo, o portão dos reis e todos os locais emblemáticos da cidade. O bairro judeu, muito semelhante ao nosso Bairro alto, é o local ideal para encontrar os bares e antros de boémia. Bebemos e fumamos cigarros com sabor a cereja. As horas passaram rápido, e durante o jantar, Karolina conta-me como se apaixonou por um homem de quarenta e dois anos que lhe destruiu a auto estima. Sente que não é mulher capaz de o satisfazer. Consigo ver no seu olhar - esse lago calmo e relaxante - que a angústia de não o ter a fragiliza. Deambulando entre a multidão procura quem a deseje. Alguém que lhe pegue a mão e lhe diga como é linda. Alguém, que como eu, perdido neste ambiente desconhecido, procure o conforto de um amor platónico.

Nesse mesmo dia, recebeu um telefonema da biblioteca nacional. A proposta de emprego com que sempre sonhou.

- Pelos vistos trouxe-te alguma sorte. - Comento em tom de brincadeira.

- Sim! Terei de me mudar para Varsóvia.

- As mudanças são boas. São o motor da evolução e as melhores são as inesperadas.

- Quero ficar contigo hoje.

- Sim, ficamos juntos.

No meu apartamento o chá de gengibre com ervas, a música calma que adoça o ambiente, os olhares que conversam no silêncio... A pele da sua face é suave. Beijo os seus lábios gretados pelo frio. Ela ri sempre que lhe toco na barriga, nos seios, no pescoço.

O calor entre as suas pernas excita-me bastante. As suas coxas são magras, os seus braços finos, toda ela é frágil. Num sussurro quase impercetível - um breve sopro no meu ouvido - diz-me que tem o período. Que o sangue é muito. O espirito de libertino e pervertido espevita e parece-me uma ótima notícia. O fluido da vida que podia ter sido, envolve-nos num cenário quase macabro. O cheiro do sangue misturado com os fluidos próprios do Desejo inebriam-nos, mais que o vodka que bebemos no Pauza (um outro bar escondido num beco no centro da cidade), bem mais que o vinho chileno que bebemos durante o jantar. A multiculturalidade está presente nesse quarto. Nos gemidos e palavras que não entendo, nos olhares diferentes dos de Lisboa, no orgasmo sanguinário que partilhamos. Este sangue que representa o Fim é também o sinal de esperança no Início que se adivinha. Enquanto arfamos cansados invadidos por endorfinas e pequenas convulsões orgásmicas, penso na nova etapa que se avizinha. O exorcismo do sangue purificou-me o espirito. Adormeço e quando acordo ela não está comigo, apenas um bilhete: “ Espero por ti às dezassete na torre onde tocam a música incompleta, K”.

Cracóvia, 14 de março 2016
um Velho Pervertido