O porteiro

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Começo o dia acompanhado pelo som de uma aleatória sinfonia clássica. Sento-me à secretária. Quando abandonei a pequena aldeia onde nasci, em busca de uma vida aventurosa e estimulante, nunca imaginei que acabaria aqui. Sentado, olhando o vazio, ocupando o tempo com deambulações pelas memórias e seguindo o voo das moscas varejeiras que ocasionalmente entram no prédio. Durante a noite, as longas horas na escuridão afogam-me a vida. Efémera e sem expectativas.

A mulher que vive no primeiro esquerdo, morena e vistosa, cumprimenta-me todos os dias, quando volta para casa. Ocasionalmente, um homem surge e entra no seu apartamento. A companhia de outrem é extremamente valiosa pois o gato não é suficiente para acalmar o fogo que a consome. Tudo isto são suposições que vou elaborando enquanto o tempo escorre por estas paredes.

- Boa noite - diz-me olhando apenas de soslaio.

Eu respondo educadamente com um tom de quem ensaiou este momento vezes sem conta.

No terceiro andar vive um arquiteto, divorciado e com um pequeno problema com o álcool. Todas as noites, quando volta a casa, carrega consigo uma garrafa de vinho tinto. Tal como um pequeno recém nascido, indefeso, a garrafa adormece nos seus braços.

Sempre pensei que estes dois se iriam juntar, talvez por conveniência ou simples atracão masoquista. Nunca aconteceu. Os homens que entram no apartamento dela por norma são sempre diferentes. Exceto um. Um tipo alto e um pouco desleixado com o que veste. Não se enquadra no estereótipo dos habitantes do prédio.

- Boa noite - diz-me sempre que lhe abro a porta e em troca oferece-me um simpático sorriso.

Eu respondo educadamente. Continuo as minhas leituras noturnas e não me inquieta a sua presença. O hábito é um perigo; tal como quem percorre o mesmo trajeto todos os dias, várias vezes por dia, eventualmente, o sinal de paragem obrigatória torna-se transparente e o acidente acontece.

Um dos pontos positivos deste trabalho é o facto de me oferecer tempo para ler (talvez para compensar o ordenado miserável). Leio e vivo os clássicos sentado nesta cadeira, à luz de um pequeno candeeiro que carrego comigo religiosamente. O silêncio das noites é por vezes interrompido pelos gemidos dela. Pelo arfar dos homens que ejaculam na solidão da sua vulva. Novamente o silêncio. O ocasional automóvel que passa lá fora. Poucos são os homens que pernoitam com ela. Exceto o tipo que me sorri e cumprimenta. Ele não imagina - assumo eu - que a cama onde dorme é igualmente o leito de outros que a procuram e que ela acolhe. Na manhã seguinte, quando guardo os meus livros e o pequeno candeeiro na bolsa que me acompanha, ele cumprimenta-me.

- Bom dia - esboçando um sorriso incompleto.

Eu respondo educadamente e fito-o de soslaio. A noite foi longa a cama que me espera está vazia e fria. Não me perturba minimamente. A solidão que esta gente vive é bem maior que a minha. Eu tenho as rotinas e a consciência de que a existência é singular. A presença de outra pessoa na nossa vida é um extra com que a natureza nos presenteia , não sendo de qualquer forma mandatária.

Também ela inicia o seu dia e eu seguro a porta para ela passar. Logo mais, quando os meus sonhos terminarem, voltarei à mesma cadeira para lhe desejar boa noite. Peço aos deuses, bruxas, santos, anjos e todos os outros seres mitológicos que não me permitam apaixonar por esta mulher. Cabrão do cupido que espeta a farpa quando menos se espera.

Lisboa, 27 de junho 2016
um Velho Pervertido