marcado no tempo

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Sonhei que era minúsculo e encontrava-me rodeado por um vazio imenso. Um vazio cheio de nada. O propósito da existência tornou-se algo vago, sem sabor e sem cheiro, sem frio e sem calor. Apenas um vazio onde existe angústia e um sentimento de procura incessante. Uma ausência de ritmo. Os sentidos apurados enganam.

Quando despertei estava num quarto estranho. A cama desconfortável e a ausência do corpo dela foram as primeiras sensações que tive. A luz que entra por entre as cortinas azuis, desenham um estreito caminho no chão. Eu não percorro o trilho da luz, escolho a escuridão que é mais reconfortante e desprovido de expectativas.

- Planos para hoje? - pergunto a mim mesmo.

- Vamos deambular pela cidade, quem sabe encontrar algo mágico que por breves momentos preencha esse vazio.

- Sabes que isso é apenas uma ilusão.

- Mesmo assim, prefiro essa ilusão à dura realidade da inexistência. Coleciono esses pequenos momentos e visito-os constantemente. Não é saudável, não é algo que recomende, no entanto, é o meu mecanismo de defesa. Sou um velho fraco e caquético escondido neste corpo.

Lavo a ressaca da cara, e mascaro-me com a confiança de quem é dono do mundo. Na rua o frio gela-me a vontade, e a chuva - pequenas farpas de prata - vai-me torturando a cada passo, até que chego à praça principal desta cidade estranha. Felizmente ainda tenho a sombra que me acompanha. Por vezes, no breu da noite, nem ela me faz companhia, e, sozinho entre memórias e remorsos, piso algo crocante como ossos secos.

Num qualquer café, numa das travessas que desaguam na praça, encontro três mulheres. Conversam entre si, riem, bebem chá, queimam pau santo. A loira tem olhos enormes de medusa; a morena, de longos cabelos negros e cara redonda, revela um esforço enorme por manter a postura de divindade. A terceira, a mais pequena, é ruiva. As ruivas têm uma sensibilidade especial. O mais leve vento sobre a pele nua é sentido como um tornado de emoções.

Sentei-me na mesma mesa que elas e bebi uma cerveja. Conversámos sobre nós. As conversas de circunstância, as pateguices de quem não é familiar a outrem. Senti que éramos cães e cheirávamos os cus uns aos outros, talvez na perversa curiosidade de descobrir se eramos feitos da mesma merda ou, por devaneio da circunstância, por uma vontade de nos lambermos só porque o dia seria longo, penoso e sem sol. Eram mulheres saudáveis, felizes com a vida que corria pelo tempo e pelo espaço. Eram devotas à lei do eterno retorno. A ruiva, possuía uma força estranhamente mortal e amarrou-me a atenção. O rabo da morena fora esculpido por um antigo artista grego - foi o que pensei quando se levantou para ir embora. Mas a ruiva, de olhos profundos e com pequenas rugas nos cantos, fez-me comichão no coração. Quando ficámos a sós, fumando cigarros e olhando-nos sem dizer qualquer palavra, desejei-a terrivelmente. O sentimento de culpa que me invadiu foi tal que tornou-se impossível não a beijar. Fechei os olhos, imaginei que ela não era ela. Ela era quem deixou o vazio na cama. Os lábios pressentem estas coisas. É impossível mentir num beijo. Sei que ela percebeu a ausência e numa queda vertiginosa osculou-me com paixão. Com a força de quem vê o Amor partir numa viagem perigosa, potencialmente sem regresso. A segurança de uma amarra, ou uma corrente num condenado, foi a consequência do encontro dos lábios. Desejei sentir o seu corpo, mas mais importante que isso, desejei conhecer a sua alma. As histórias de quem havia vivido numa selva.

- Não oiço música. Estive dois anos a escutar, apenas e só, a sinfonia da natureza. Os pássaros, o cantar das folhas nas arvores tropicais, os animais que correm sobre as folhas secas, a água que escorre entre calhaus polidos pelo tempo.

Disse-lhe que era uma mulher interessante e que os seus dedos, finos e compridos, eram lindos e entrelaçavam perfeitamente nas minhas mãos calejadas e brutas.

Ambos soubemos nesse momento que iríamos partilhar fluídos e respirações comuns. Nessa noite, quando por fim numa cama lhe li esta história, a sonolência invadiu-nos e enroscamo-nos. Um abraço de carência e cumplicidade. O sol irá nascer, as horas irão passar e eu irei desaparecer. Ambos sabíamos. Fodemos durante horas, até o sexo se tornar profundo e familiar aos corpos. As mãos entrelaçadas, os sexos num beijo contínuo. Os fluidos escorriam em lágrimas pela nossa pele. O sabor da sua vulva - néctar de pecado - fundiu-se com a minha língua. Eu dentro dela, numa sintonia incomum para corpos com vícios de outros corpos, fizeram-nos crer que há histórias que haviam acontecido antes de o serem.

Na manhã seguinte quando a chuva era intensa e nos acordou com a sua ladainha, ela disse-me:

- Tive um sonho estranho. Sonhei que nos tínhamos conhecido no futuro.

Cracóvia, 15 de março 2016
um Velho Pervertido