Encontro cego

#

Foi com a vontade de nos apaixonar que combinamos encontrar-nos em Buenos Aires. Eu cheguei primeiro. Ele estava atrasado. Sei que o trânsito nesta cidade torna-se um pesadelo, principalmente nas sextas feiras por volta da hora do jantar. Não somos apologistas de encontros cegos, no entanto, todos os encontros são cegos e assim aconteceu. A imagem tridimensional que apresentamos a quem connosco se cruza é muitas vezes ficcionada. O encontro dar-se-ia num pequeno restaurante. Eu mesma reservei a mesa. Ele parecia-me ser um homem interessante. Algo confuso e não sei se inseguro ou simplesmente um perigoso predador que se alimenta de paixões. Enquanto observava as sombras que a luz das velas geravam nas paredes do restaurante recordei as suas palavras ao telefone:

- Aposto que chego primeiro que tu. Estou bastante curioso por te conhecer.

Mas aqui estava eu, sozinha, aguardando este desconhecido que me encheu o coração com esperanças e sonhos.

Enquanto os casais pediam os pratos e riam e conversavam e trocavam carinhos, ouvi dentro de mim uma voz que justificava o atraso deste estranho. Validava o facto de eu me sujeitar a estas situações mesmo sendo a mulher que muitos homens desejam e que me ofereceriam o céu e as estrelas em troca de um simples olhar.

Numa das paredes do restaurante, uma imagem de um casal, sentados a uma mesa de jantar. Fez-me crer ser um espelho no qual a imagem congelou e não mais reflete a realidade. Um espelho que o deixou de ser. Naquela imagem, a mulher sorri e o homem segura um pequeno copo de vinho. Imagino o que estarão conversando. Possivelmente ele disse-lhe que ela era linda e que estava muito satisfeito por ela ter aceitado o seu convite. Deve ter tido um dia complicado e mesmo assim foi capaz de chegar a horas ao restaurante onde esperou por ela. Esperou mesmo quando ela tardava em chegar, provocando nele uma ansiedade destruidora. Mas eu não. Eu não sinto ansiedade, aliás, ele está mesmo a chegar. Voltou a telefonar-me apenas para dizer que acabou de estacionar. Neste momento corre em desespero pelas ruas da cidade. Há uma música ambiente que envolve esta sala. Sonoridades latinas, ritmadas, intensas e quentes. Quando a música termina, um breve silêncio permite que as conversas nas outras mesas se elevem e é quando ele passa a porta. Olha em redor, os olhos adaptam-se à escuridão do local e fita-me. O seu olhar meigo e o sorriso tímido fazem-me derreter pela cadeira como melaço. Nesse momento soube que ele iria ser uma fonte de problemas. Jorrariam dilemas e frustrações dos seus atos e palavras.

- Desculpa o atraso, o trânsito está horrível - Disse enquanto me beijou na face. Falou como se fossemos velhos conhecidos que com uma crosta de tempo acoplada ao coração suportam e toleram estas situações de desapego.

A conversa de circunstância de quem se conhece pela primeira vez é sempre agradável. A descoberta sempre foi o melhor e mais barato afrodisíaco. O preço que se paga por esta ilusão é conhecido, no entanto, disposta a suportar mais um tombo de paredes sobre o meu já remendado Coração, entreguei-me de forma frívola.

Na semana seguinte dormimos juntos, ele havia comprado uma escova de dentes que conservou junto à sua. A almofada, a minha, tinha um forro vermelho e contrastava com o branco da sua. Seria eu o demónio que entrava na sua cama trazendo o pecado mais desejado? O sexo foi saboroso, repetimos e repetimos até os corpos cederem ao cansaço. Nos abraços matinais e no sabor de boca adormecida sussurrámos os nossos desejos e mais uma vez senti-o dentro de mim.

Os dias que passaram foram estranhos. Não tínhamos propriamente a idade de jovens adolescentes numa maré de descoberta e novidade. Já havíamos cultivado cicatrizes, crostas e memórias castradoras. Os nossos espíritos ainda eram estranhos um ao outro. Os nossos dedos ainda não enlaçavam de forma complementar. Ainda éramos peças de barro brutas que necessitavam de se moldar uma à outra. O meu relógio padecia de energia, o tempo esgotava-se e eu sentia-o escorrer como se de uma hemorragia se tratasse; pelo coração, pelos dedos e eventualmente pela vagina. Senti que ele se comportava como Ícaro, à beira de um abismo, esperançoso de que as falsas asas o ajudassem a voar, deixando para trás o trilho de destruição que o perseguia. Tal como no nosso encontro cego, ele chegou atrasado aos meus braços e o sabor a fel apoderou-se do meu paladar. Fiquei fraca, a crosta de rocha que se formou em volta dele impossibilitou-me de o ver na sua forma mais pura. Não tive força para quebrar esse casulo rochoso onde ele, aprisionado, chamava por mim. Nos braços de outro, envolvida no suor de outro, recordo esse meu Amor encarcerado na lava que solidificava cada vez que fodiamos.

Lisboa, 26 de maio 2016
um Velho Pervertido